O ensino de Joseph Ratzinger sobre o ecumenismo

Em 30 de Junho de 2000, o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé publicou uma “Nota sobre a Expressão Igrejas Irmãs”, para recordar qual é o seu “uso próprio e adequado.” Remontando à História, é dito no seu ponto 3.: “Na literatura eclesiástica, a expressão começa a ser empregada no Oriente, a partir do século V, quando se vai difundindo a ideia da Pentarquia, segundo a qual, à cabeça da Igreja se encontram os cincos Patriarcas, com a Igreja de Roma a ocupar o primeiro lugar entre as Igrejas irmãs patriarcais. A propósito, note-se que nenhum Pontífice Romano reconheceu semelhante equiparação das sedes e jamais aceitou que à sede romana fosse reconhecido apenas um primado de honra. Tenha-se igualmente presente que no Ocidente não se desenvolveu a estrutura patriarcal, típica do Oriente.”

Sobre o uso teologicamente correcto da expressão, afirma-se nos pontos 10 e 11 : “De facto, em sentido próprio, Igrejas irmãs são exclusivamente as Igrejas particulares (ou os agrupamentos de Igrejas particulares, como, por exemplo, os Patriarcados e as Metrópoles) entre si. Deverá resultar sempre claro, mesmo quando a expressão Igrejas irmãs é usada neste sentido próprio, que a Igreja Universal, una,santa, católica e apostólica, não é irmã mas mãe de todas as Igrejas particulares. Por conseguinte, deve evitar-se como fonte de mal-entendidos e de confusão teológica o uso de fórmulas como “as nossas duas Igrejas”, que insinuam – se aplicadas à Igreja Católica e ao conjunto das Igrejas Ortodoxas (ou a uma Igreja Ortodoxa) – um plural não só a nível de Igrejas particulares, mas a nível da Igreja una, santa, católica e apostólica, professada no Credo e cuja existência real apareceria assim ofuscada.”

Passado pouco mais de um mês, em 6 deAgosto, o mesmo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé divulgou – depois de ratificada e confirmada por João Paulo II – a Declaração Dominus Iesus. Este documento baseia-se cuidadosamente em citações do Vaticano II e da Ut Unum Sint para declarar que “os fiéis são obrigados a professar que existe uma continuidade histórica – radicada na sucessão apostólica – entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica.”

Entre outras afirmações, nos pontos 16. e 17. fica estabelecido que: “[…] O Concílio Vaticano II quis harmonizar duas afirmações doutrinais: por um lado, a de que a Igreja de Cristo, não obstante as divisões dos cristãos, continua a existir plenamente só na Igreja Católica e, por outro, a de que «existem numerosos elementos de santificação e de verdade fora da sua composição», isto é, nas Igrejas e Comunidades eclesiais que ainda não vivem em plena comunhão com a Igreja Católica. Acerca destas, porém, deve  afirmarse que «o seu valor deriva da mesma plenitude da graça e da verdade que foi confiada à Igreja Católica». Existe, portanto, uma única Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele. As Igrejas que, embora não estando em perfeita comunhão coma Igreja Católica, semantêmunidas a esta por vínculos estreitíssimos, como são a sucessão apostólica e uma válida Eucaristia, são verdadeiras Igrejas particulares. Por isso, também nestas Igrejas está presente e actua a Igreja de Cristo, embora lhes falte a plena comunhão com a Igreja Católica, enquanto não aceitam a doutrina católica do Primado que, por vontade de Deus, o Bispo de Roma objectivamente tem e exerce sobre toda a Igreja. As Comunidades eclesiais, ao invés, que não conservaram um válido episcopado e a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, não são Igrejas em sentido próprio.”

Estes dois documentos, redigidos e assinados pelo Cardeal Joseph Ratzinger, esclarecem os menos informados sobre qual é a doutrina oficial, recente e actualizada, do homem que foi eleito Papa Bento XVI, quanto à relação entre a Igreja Católica Romana e o movimento ecuménico. São muito claros os seus pressupostos:

1 – Unicidade da Igreja Católica, como depositária da sucessão apostólica em plenitude.

2 – Legitimidade “derivada”, nas que “ainda” não vivememplena comunhão com aquela.

3 – As Ortodoxas são “verdadeiras Igrejas particulares”, mas falta-lhes a plena comunhão com a Igreja Católica, “enquanto não aceitam a doutrina católica do Primado” (…/…)

4 – As Comunidades eclesiais, sem ministérios e sacramentos válidos, “não são Igrejas em sentido próprio.”

Decorre daqui que a esmagadora maioria das Igrejas que se envolveram no movimento ecuménico histórico, e se tornaram membros do Conselho Mundial de Igrejas, não são sequer consideradas Igrejas pela autoridade máxima da Igreja Católica Romana, que não aceitou pertencer ao mesmo Conselho na qualidade de Igreja irmã.

Na sua edição seguinte à divulgação da Dominus Iesus, o semanário protestante francês Réforme punha em título destacado “O Inverno Ecuménico”.5 E oArcebispo de

Cantuária sentiu-se na necessidade de dizer, com toda a veemência, que “a Igreja Anglicana e a Comunhão Anglicana no mundo não aceitam nem por um instante que o seu Ministério e a sua Eucaristia sofram de insuficiência, seja ela qual for.” Em Janeiro de 2001, o teólogo italiano Paolo Ricca, da Igreja Valdense, foi até ao fundo do problema nesta síntese: “Chegamos hoje à questão central do diálogo ecuménico, à diferença fundamental que diz respeito à natureza da Igreja.” O problema coma Igreja Católica é “esta tradição milenar que identificou a unidade cristã com a unidade católica, e a unidade católica com a unidade romana. Há aí uma sequência de curto-circuitos que acabam por ligar a unidade, a universalidade e a catolicidade à romanidade. A tradição que faz de Roma o centro directivo da Igreja continua a ser uma realidade intangível nesta Igreja.” No documento citado no início deste trabalho, o Papa Bento XVI estabelece uma diferença entre o “diálogo teológico” da Igreja Católica com as Igrejas Ortodoxas, a que se imprimiu um “renovado impulso”, e os vários diálogos bilaterais com as Comunidades eclesiais do Ocidente, que têm permitido, tanto a “confirmação de algumas convergências”, como a “identificação mais específica das autênticas divergências.” Destaca de entre estes, como fruto principal, a assinatura da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (1999).

Este importante documento, assinado em Augsburgo no Dia da Reforma (31 de Outubro), entre a Igreja Católica Romana e a Federação Luterana Mundial, afirma no seu ponto 15 : “Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceites por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para as boas obras.”

Este simples parágrafo seria bastante para “justificar”, em toda a propriedade do termo, que o jornal Osservatore Romano desse destaque de primeira página a uma frase como – Lutero Tinha Razão. Nem isto aconteceu, nem foi revogado nada do que entretanto fora promulgado no Concílio da Contra-Reforma, em Trento. O que se diz no ponto 13 é mais modesto: a presente Declaração “pode formular um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação, a cuja luz as correspondentes condenações doutrinais do séc. XVI não mais se aplicam ao parceiro de hoje.”

O resultado a que se chegou, depois de quase vinte anos de negociação, ficou designado por “consenso diferenciado”. Um estudo publicado mais tarde, sobre esta matéria, pela Aliança Reformada Mundial (que reúne as Igrejas históricas da tradição Calvinista), dizia que se trata de um consenso “em que os parceiros se põem de acordo e, com base nesse acordo, concordam em discordar.”

Observado de perto, o documento confirma plenamente esta ironia. A partir do capítulo 4 (O desdobramento da compreensão comum da justificação), o texto passa a funcionar a três tempos. Para cada ponto doutrinal específico, há sempre um parágrafo de abertura que diz “Confessamos juntos que…”. Seguem-se então dois outros parágrafos, num dos quais se explica qual é o entendimento especificamente católico desse ponto, e no outro qual é o entendimento luterano.

As frases finais mantêm toda a ambiguidade: o ponto 41 estabelece que as condenações doutrinais recíprocas do séc. XVI já não se aplicam ao que ficou acordado neste texto, mas o ponto 42. diz que “com isso não se tira nada da seriedade das condenações doutrinais referentes à doutrina da justificação. Algumas delas não eram simplesmente infundadas; elas conservam para nós ‘o significado de advertências salutares’, que devemos observar na doutrina e na prática.” E o ponto 43 “esclarece” que ficam questões de importância diversificada que exigem ulteriores esclarecimentos: “…/… a relação entre a Palavra de Deus e doutrina eclesiástica, bem como a doutrina a respeito da Igreja, da autoridade na Igreja, da sua unidade, do ministério e dos sacramentos, e finalmente a doutrina da relação entre justificação e ética social.”

Aliás, a primeira vez que, ainda no preâmbulo do documento, se usa o termo “Igreja” a respeito das Igrejas Luteranas (no ponto 5 “com base no diálogo, as Igrejas Luteranas signatárias e a Igreja Católica Romana estão agora em condições de articular uma compreensão comum de nossa justificação pela graça de Deus na fé em Cristo”), há logo uma nota de pé-de-página a avisar que, “na presente Declaração Conjunta, a palavra “Igreja” reproduz a respectiva auto-compreensão das Igrejas participantes, sem que com isso se queira considerar resolvidas todas as questões eclesiológicas a ela associadas”.

Outra ironia é que, enquanto os teólogos dos dois lados ainda trabalhavam no acabamento da Declaração Conjunta, João Paulo II não se impedia de publicar, em Novembro de 1998, a Bula Incarnationis Mysterium – que recupera a doutrina medieval das indulgências que esteve, precisamente, na origem das primeiras polémicas públicas entre o monge Martinho Lutero e a burocracia vaticana. A sua divulgação em língua portuguesa coincidiu com a celebração da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos de Janeiro de 1999.

Na Páscoa de 2003, João Paulo II promulgou a Encíclica Ecclesia de Eucharistia, que, entre outras coisas, proíbe formalmente todas as práticas de “hospitalidade eucarística” (intercomunhão) com os fiéis das “Comunidades eclesiais” provenientes da Reforma. Mesmo a tempo de ensombrar o primeiro Kirchentag Ecuménico realizado na Alemanha. Dois sacerdotes católicos que ousaram desobedecer foram punidos.7

Em resposta a esta última Encíclica, o secretário-geral da Federação Luterana Mundial, o Rev. Ishmael Noko, lamentou o facto de ela continuar a não reconhecer a validade dos ministérios ordenados nas Igrejas da Reforma e, portanto, da Eucaristia nelas praticada, apesar dos muitos anos de diálogo ecuménico com a Igreja Católica depois do Vaticano II. Referindo-se à Declaração Conjunta, disse ainda que, se estes acordos em matéria de doutrina acabam por não ter consequências práticas nas relações institucionais entre as Igrejas, então fica em causa se vale a pena trabalhar tanto por eles.

Este texto de Silas Oliveira sobre o movimento ecuménico foi inicialmente publicado na “Revista Lusófona de Ciência das Religiões” (2012), como trabalho final do curso de formação avançada sobre Jornalismo e Religiões, promovido pela Universidade Católica Portuguesa e o CENJOR em 2006/2007

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