Do corpo negado ou idolatrado, ao corpo respeitado

Será que é possível, atualmente, abordar o tema da corporalidade sem preconceitos?

Durante quase meio século fomos atingidos por uma onda ideológica que apregoa o bem-estar individual e insistindo na reabilitação do corpo “maltratado” pelo Judeu-Cristianismo. O discurso ambiente é o seguinte: para estarmos bem com o nosso corpo, para nos reconciliarmos com o nosso corpo, lugar da verdade e do prazer, é preciso transgredir os modelos sociais e religiosos que nos impedem de o fazer!

Este discurso “politicamente correto”, que sobrevaloriza o corpo, assenta numa ideologia individualista omnipresente na nossa cultura. Note-se também que este discurso aponta para realidades económicas onde o corpo se tornou uma questão de crescimento económico. A nossa sociedade de consumidores, globalizada, tende a normalizar os laços que forjamos com os nossos corpos idealizados e rejuvenescidos, melhorados por fármacos cada vez mais caros. Tudo é feito para que estejamos “bem com o nosso corpo”. Mas, o que é que significa estar bem com o seu próprio corpo? Será que isso é sempre possível?

Ainda me lembro da minha ansiedade quando, adolescente, via o meu corpo mudar. Lembro-me também de me sentir desconfortável com este meu corpo muito esguio, do meu ponto de vista, que eu gostaria de ver mais musculado. Ainda me lembro de me sentir incomodado no meu corpo ou com o meu corpo, quando, durante as saídas de jovens, amigos e namoradas, se decidia ir dançar. Isto, porque na minha subcultura protestante portuguesa, bastante puritana, a proximidade dos corpos era vista com desconfiança. Mas também me lembro daqueles momentos privilegiados em que descobri as insuspeitas possibilidades do meu corpo, as mais variadas sensações, a alegria do esforço, o prazer da relação amorosa. No meu corpo, com o meu corpo, também descobri os meus limites, a minha fraqueza, o meu sofrimento físico, a minha condição humana…

Na realidade, todos gostaríamos que o nosso corpo fosse o reflexo daquilo que acreditamos ser belo, bom, autêntico, um corpo que se submete aos nossos desejos, que não nos faz sentir desconfortáveis. Mas a realidade é bem diferente. O corpo foi-nos dado pelos nossos pais e tanto pode ser grande como pequeno, gordo ou magro, saudável ou doente, independentemente da nossa vontade. A imagem que tenho do meu corpo procede igualmente de uma cultura, de uma filosofia ou de um sentimento religioso partilhados. Não sou o único dono do significado que atribuo ao meu corpo. Podemos tentar moldar ou ultrapassar os limites do corpo, mas, à exceção de um pequeno número de pessoas com uma vontade muito forte, rapidamente percebemos que isso não nos é possível. Além disso, o corpo ainda tem os seus próprios requisitos que temos de satisfazer regularmente para nos mantermos vivos: comer, beber, eliminar os seus resíduos, mover-se, descansar, reproduzir-se, gozar, sofrer, resistir à nossa vontade, não querer perecer. É por isso que, apesar do fascínio exercido pelo corpo, encontramos a convicção, como uma constante em todas as culturas, de que o corpo também nos fixa limites e que pode ser um obstáculo à mente.

A imagem do corpo, a relação com o corpo, o poder sobre o corpo (o seu próprio e o dos outros), são realidades sempre presentes ao longo da história humana. A tradição clássica ocidental ensinou-nos a ter cuidado com o corpo, entendido como uma fonte de ilusões. Na verdade, somos os herdeiros de uma cultura greco-romana que desconfiava do corpo e via nele um obstáculo à vida verdadeira, à vida intelectual. Jean-Claude Guillebaud (cf. Le principe d’humanité, Paris, Ed. du Seuil, 2011) , um ensaísta francês, oferece-nos páginas muito esclarecedoras sobre o que ele chama a “antiguidade imaginária”, porque se tornou de bom tom ou “corporalmente correto” denunciar o Judeu-Cristianismo, culpado, aos olhos dos nossos contemporâneos, de ter feito do corpo um inimigo e de minar a liberdade sexual. Imagina-se então uma Antiguidade onde os corpos são oferecidos a olhares sem vergonha e onde a sexualidade é vivida “naturalmente” sem tabus. Mas se é verdade que a aristocracia romana cultivava o gozo dos corpos, do corpo dos escravos em particular, esta busca hedonista repousava, pelo contrário, num contexto pessimista e desdenhável da materialidade do corpo. É a sua valorização por parte dos cristãos, que proclamaram um Deus incarnado e a ressurreição dos corpos, que é uma das causas do seu sucesso.

Não pretendo, evidentemente, edulcorar a nossa história cristã porque, em continuidade com a cultura greco-romana, o cristianismo acabou por desconfiar da corporalidade. Ao tornar-se uma religião entre todos as outras, o cristianismo assimilou a ambivalência do corpo que as caracteriza, pois, o mundo religioso está dilacerado entre o mental e o corporal e é por isso que todas as religiões prescrevem ritos de purificação, tabus e preceitos que regem a vida prática. Todas religiões tendem a ver o corpo como um envelope da mente, e às vezes, como um obstáculo à elevação da alma. É por isso que muitas delas desenvolveram diversas formas de ascetismo para sujeitar o corpo. No que diz respeito aos cristãos, temos alguns exemplos nos Pais do Deserto, a partir do século IV. Mas como é que pode uma religião que acredita na união íntima entre a alma e o corpo, desprezar o corpo?

Do ascetismo radical (com as suas mutilações) à Inquisição, passando pelo celibato dos sacerdotes, a má reputação do corpo na Idade Média deve ser entendida a partir deste património filosófico e religioso. São as perversões religiosas do ascetismo cristão, especialmente monástico, que, segundo Jean Delumeau (Cf. Le péché et la peur, la culpabilisation en occident, Paris, Fayard, 1991), levaram ao desprezo pelo corpo e ao desprezo pelo mundo. A Reforma protestante foi construída contra estas perversões, tentando reabilitar o corpo, o lugar da salvação aqui e agora. No entanto, o calvinismo, que exerceu uma grande influência nas sociedades protestantes, reconectar-se-á com o ascetismo, num registo completamente diferente, através de uma grande austeridade na vida social e de um rigorismo moral excessivo, desconfiado de tudo o que possa ser visto como uma fonte de prazer! Em qualquer dos casos, é no nosso património filosófico e religioso que se encontra a negação do corpo, que está na origem de todas as inquisições e de todos os puritanismos.

Este dualismo alma-corpo vai quebrar-se na modernidade e conduzirá, por reação, à sobrevalorização do corpo que caracteriza a nossa época. É uma verdadeira inversão e as manifestações desta “desforra” são múltiplas: a preocupação com a aparência, o jogo da sedução, as preocupações com a realização individual com várias práticas como a expressão corporal, massagens, exercícios físicos, meditações, novas terapias que valorizam a dimensão corporal, a sua memória e a sua linguagem. Esta exigência do direito ao prazer e ao bem-estar, por si só compreensível e benéfica quando se pensa no dolorismo e puritanismo anteriores, tornou-se, no entanto, num culto narcisista do corpo.

Atualmente, a saúde é considerada um estado normal pelo qual somos totalmente responsáveis, exigindo-se o direito de melhorar o corpo. Paradoxalmente, com o desenvolvimento da tecnologia e da cibercultura, começamos a sonhar com um “híper corpo” melhorado, finalmente libertado dos constrangimentos do corpo carnal imperfeito e frágil. Não se pense que isto é ficção científica. Muitos cientistas, informáticos, biólogos e engenheiros, trabalham hoje nesta direção. O Cyborg – um ser humano em que diversos tipos de próteses eletrónicas e mecânicas foram transplantadas – não é apenas um objeto de investigação. Já existe. Todos nós já somos um pouco ciborgues quando se pensa nas próteses que usamos e que contribuem para o conforto do nosso dia-a-dia. O problema é que não se trata apenas de reparar o corpo ou de o tornar mais eficiente em termos de saúde ou mobilidade, mas de assumir o controlo da nossa evolução de forma a substituir deliberadamente a nossa espécie por outra melhorada e superior, capaz de superar as contingências do corpo.

A convergência dos avanços na ciência da computação e na biotecnologia torna o “transumanismo” muito menos delirante do que se pode pensar. Vários cientistas e empresários estão interessados numa possível fusão do cérebro humano com inteligência artificial. Isto fecharia o ciclo. Depois de desconfiar do corpo, de o ter desprezado e depois idolatrado, a nossa civilização estaria prestes a voltar ao seu ponto de partida: o corpo humano, mais uma vez “o túmulo da alma”, cedendo o seu lugar a máquinas inteligentes submetidas à nossa mente capaz, se necessário, de se desmaterializar.

A fé num Deus criador, assumindo a condição humana, pode ser um forte bastião contra todas estas derivas ideológicas e técnicas. Através das suas raízes espirituais semíticas e bíblicas, o Judeo-Cristianismo testemunha da especificidade do ser humano, isto é, da unidade do corpo e do espírito. “Corpo” como expressão integral do espírito” e “Espírito” como revelação da unidade oculta do corpo (Houziaux).

Joel Lourenço Pinto

Além dos livros acima referidos, veja-se ainda:

GUILLEBAUD, Jean-Claude, La Vie vivante: contre les nouveaux pudibonds, Paris, Les Arènes, 2011 (tr. A Vida Viva: contra as novas dominações, Bertrand Brasil, 2015)

HOUZIAUX, Alain, Le corps, un plaisir ou un poids? Paris, Ed. de l’Atelier, 2007

FERRY, Luc, La révolution Transhumaniste. Comment la technomédecine et l’uberisation du monde vont bouleverser nos vies, Paris, Plon, 2016 (tr. A Revolução transhumanista, São Paulo, Manole, 2018

 
 

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