Bonhoeffer escreveu estas reflexões para um pequeno grupo de amigos conspiradores e a alguns membros da sua família envolvidos na conspiração contra Hitler. Uma cópia foi preservada sob os azulejos da casa dos pais de Bonhoeffer em Charlottenburg. Foi incluída em trabalhos póstumos Widerstand und Ergebung (Resistência e submissão) e Gesalmmelte Schriften (Escritos compilados)
Balanço na passagem do ano de 1943
“Dez anos é muito tempo na vida de uma pessoa. Uma vez que o tempo, que é irrecuperável, que é o bem mais valioso que está à nossa disposição, cada olhar retrospetivo preocupa-nos com a possibilidade de termos desperdiçado o nosso tempo. Teremos perdido tempo que se não tivermos vivido como homens, se não tivermos acumulado experiências, aprendido, criado, fruído e sofrido. O tempo perdido é tempo não preenchido, vazio. Esta não tem sido certamente a característica dos últimos anos. Perdemos muito, perdemos bens imensuráveis, mas não perdemos o tempo. É verdade que os conhecimentos e a experiência que adquirimos, dos quais só depois temos consciência, são apenas abstrações do real, da vida tal como ela é vivida. Mas tal como ser capaz de esquecer é certamente uma graça, também a memória, a repetição dos ensinamentos recebidos, pertence a toda a vida responsável”
Quem se mantém firme sem solo sob os pés?
“Terá havido alguma vez na história pessoas que, no momento presente, tivessem tão pouco apoio debaixo dos pés, e para quem todas as alternativas possíveis no presente parecessem igualmente insuportáveis, contrárias à vida e sem sentido? Pessoas que, para além de todas as alternativas presentes, procurassem a fonte da sua energia tão completamente no passado e no futuro e que, sem serem sonhadoras, pudessem, no entanto, esperar a realização da sua causa com tanta calma e confiança como nós? Ou melhor: terão alguma vez os pensadores responsáveis de uma geração, perante uma grande mudança histórica, alguma vez tiveram sentimentos diferentes dos nossos de hoje, precisamente porque estava a surgir algo realmente novo, que não se esgotava nas alternativas do presente?
A grande mascarada do mal tem perturbado todos os conceitos éticos. Para aqueles que vêm do nosso mundo tradicional de conceitos éticos, o facto de o mal aparecer sob o disfarce de luz, de ação benéfica, de necessidade histórica, de justiça social, é simplesmente perturbador. Para o cristão que vive segundo a Bíblia, isto é uma confirmação do mal abismal do mal.
Mostra o fracasso de pessoas sensatas que, com as melhores intenções do mundo e uma ignorância ingénua da realidade, acreditam que podem voltar a reunir, com a ajuda da razão, um quadro completamente dilapidado. Com a sua visão deficiente, querem fazer justiça a todos. Como resultado, são aniquilados pelas forças em confronto, sem terem resolvido o que quer que seja. Desiludidos pela insensatez do mundo, estão condenados à esterilidade: retiram-se com resignação ou caem incondicionalmente nas mãos dos mais fortes.
Mas o que ainda é mais chocante é o fracasso do fanatismo ético. O fanático acredita que pode confrontar o poder do mal com a pureza dos seus princípios. Mas tal como um touro, atira-se contra a muleta vermelha em vez do toureiro. Deste modo, cansa-se e sucumbe. Fica enredado no acessório e cai na armadilha preparada para ele pelo mais astuto dos sagazes.
O homem consciente luta sozinho contra a superioridade das situações coercivas que exigem uma decisão. Mas a escala dos antagonismos nas quais tem de optar – sem nenhum auxílio ou apoio a não ser da sua própria consciência – dilacera-o. Os inúmeros disfarces, honrados e sedutores, em que o mal se aproxima dele, provocam medo e insegurança na sua consciência, até que finalmente se contenta em ficar com a consciência limpa em vez de uma boa consciência, enganando a sua própria consciência para não desesperar. Que uma má consciência possa ser mais saudável e mais forte do que uma consciência iludida, é algo que um homem cujo único apoio é a sua consciência jamais será capaz de compreender. O caminho seguro parece-lhe ser aquele que lhe parece mais correto para evitar esta profusão desconcertante de decisões eventuais. Aqui, o que é ordenado parece-lhe, portanto, ser o mais seguro, porque a responsabilidade da ordem pertence a quem ordena, não a quem executa a dita ordem. Mas ao limitar-se a cumprir o seu dever, nunca atinge o risco da ação efetuada em nome da sua responsabilidade pessoal, a única capaz de atingir o mal no seu âmago e ultrapassá-lo. O homem do dever terá finalmente de cumprir o seu dever, mesmo perante o próprio diabo.
Contudo, aquele que está disposto a permanecer firme neste mundo, assumindo a sua própria liberdade, o que dá mais valor ao ato necessário do que à pureza da sua consciência e reputação, o que está disposto a sacrificar um princípio estéril a um compromisso produtivo, ou mesmo uma sabedoria estéril e medíocre a um radicalismo produtivo, que ele cuide de que esta liberdade não se transforme numa armadilha. Aceitará o que é mau, a fim de evitar o pior. E ao fazê-lo, já não será capaz de reconhecer que, precisamente, o pior que quer evitar pode ser o melhor. Esta é a matéria-prima das tragédias.
Fugindo a qualquer debate público, há ainda aqueles que se refugiam na virtude individual. Mas também eles têm de fechar os olhos e os lábios à injustiça que é cometida à sua volta. É apenas à custa do autoengano que podem lavar as mãos da mancha da ação responsável. Façam aquilo que fizerem, nunca ficarão sossegados em relação àquilo que deveriam ter feito mas não fizeram. Este mal-estar aniquilá-los-á, ou então torná-los-á os mais hipócritas dos fariseus.
Então quem é que se manterá firme? Apenas quem tiver por norma suprema não a razão, os princípios, o conhecimento, a liberdade ou a virtude, mas quem for capaz de tudo sacrificar quando se sentir chamado pela sua fé, em união com Deus, a agir de maneira obediente e responsável. Apenas o ser responsável cuja vida responde ao questionamento e apelo de Deus. Mas onde estão esses seres responsáveis? […].
Sobre o sucesso
Não é verdade que o sucesso justifique um ato perverso e meios condenáveis, mas também não é possível considerar o sucesso como algo completamente neutro de um ponto de vista ético. A realidade é que o sucesso histórico cria o único terreno sobre o qual a vida pode continuar. É duvidoso saber se é eticamente responsável fazer uma campanha semelhante à do Dom Quixote enfrentando uma realidade que nos ultrapassa ou se, confessando a nossa ignorância, consentirmos, em última análise, em nos disponibilizarmos livremente para o confronto com a nova realidade da época em que vivemos. O Senhor da História acabará sempre por transformar o mal em bem. Transforma sempre o mal de novo em bem. […]
Falar de um insucesso heroico perante uma derrota inevitável é no fundo um ato muito pouco heroico, pois não se atreve a olhar para o futuro. A derradeira questão responsável não é saber como é que eu posso escapar heroicamente a estas interrogações, mas sim como é que a próxima geração deve continuar a viver. Apenas com base nesta questão historicamente responsável podem surgir soluções frutuosas, mesmo que por enquanto sejam muito humilhantes.
Em suma: é muito mais fácil mantermo-nos no domínio dos princípios do que no domínio da responsabilidade concreta. A geração mais jovem será sempre capaz de sentir, com a maior certeza, se agiu simplesmente por princípio ou com base numa responsabilidade atuante, porque o que está aqui em jogo é o seu próprio futuro. […]
Fé sobre a ação de Deus na história
Acredito que Deus transforma o mal em bem e que mesmo as piores coisas não são definitivas. Para isso, Deus precisa de pessoas que trabalhem em conjunto para que o bem triunfe. Acredito que Deus nos concederá em cada situação difícil tanta resiliência como a que precisamos. Mas ele não no-lo dá antecipadamente, para que não confiemos em nós próprios, mas apenas nele. Numa tal fé, temos de superar todo o medo do futuro. Acredito que as nossas falhas e erros também não são vãs, e que não é mais difícil para Deus lidar com os nossos erros do que com as nossas supostas boas ações. Acredito que Deus não é um destino intemporal, mas espera e responde às nossas sinceras orações e ações responsáveis. […]
Presente e futuro
Até agora pareceu-nos que um dos direitos mais inalienáveis da vida humana era planear a sua vida pessoal e profissional. Já não é este o nosso caso. Devido à força das circunstâncias, encontramo-nos numa situação em que somos forçados a desistir de nos inquietarmos pelo “dia de amanhã” (Mt 6,34). Mas há uma diferença essencial se isto acontecer por causa de uma atitude livre de fé, como pretende o Sermão da Montanha, ou por uma servidão involuntária às circunstâncias. Para a maioria das pessoas, esta renúncia forçada a todos os planos em relação ao futuro significa renderem-se ao momento presente de uma forma irresponsável, irrefletida ou resignada; alguns ainda sonham nostalgicamente com um futuro mais belo e tentam, assim, esquecer o presente.
Para nós, ambas as atitudes são igualmente impossíveis. Temos apenas diante de nós o caminho estreito, e por vezes pouco visível, da aceitação de cada dia como se fosse o nosso último, vivermos o dia a dia com tal fé e responsabilidade como se ainda houvesse um grande futuro. Numa situação tão paradoxal como a nossa, contraditória e imprevisível, o profeta Jeremias teve de anunciar imediatamente antes da destruição da cidade santa, como sinal da Aliança divina, um novo e grande futuro face a essa ausência total de futuro. Pensar e agir com vista à geração futura e, ao mesmo tempo, estar pronto todos os dias em partir sem medo ou preocupação, tal é a atitude a que somos praticamente obrigados e na qual não é fácil, mas necessário, perseverar corajosamente. […]
Perigo e morte
A ideia da morte tornou-se-nos cada vez mais familiar nos últimos anos. Até nos admiramos com a impassibilidade com que recebemos a notícia da morte dos nossos contemporâneos. Já não podemos odiar tanto a morte; descobrimos-lhe uma certa bondade nas suas características e quase nos reconciliámos com ela. No fundo, sentimos que já lhe pertencemos, e que cada novo dia é um milagre. Certamente que não seria justo dizer que morreríamos de boa vontade, mesmo que alguém o possa admitir.
Somos demasiado curiosos, ou, para o dizer mais seriamente, gostaríamos ainda de contemplar o significado da nossa vida despedaçada. Também não vestimos a morte de trajos heroicos, pois a vida é demasiado preciosa e demasiado grande para nós. Esta é mais uma razão para nos recusarmos ver o perigo como o significado da nossa existência. Não estamos suficientemente desesperados e sabemos demasiado sobre as coisas boas da vida para o admitirmos. E também sabemos demasiado sobre o medo da morte e todos os outros efeitos destrutivos de uma constante ameaça à vida. Ainda prezamos a vida, mas acredito que a morte já não nos pode surpreender demasiado. Dadas as experiências da guerra, dificilmente ousamos confessar o nosso desejo de que a morte não nos surpreenda por acaso, de repente, isolada do essencial, mas sim na plenitude da vida e na totalidade da acção. Não serão as circunstâncias externas, mas nós, que transformaremos a nossa morte no que ela deve ser: uma morte livremente consentida.
Será que ainda somos úteis?
Temos sido testemunhas mudas de ações malévolas, aprendemos a arte da dissimulação e do discurso equívoco e a experiência tem-nos ensinado a desconfiar dos homens. Muitas vezes privámos o nosso vizinho da verdade ou da palavra livre que lhe devíamos. Conflitos insuportáveis amoleceram-nos ou talvez nos tenham tornado cínicos. Será que ainda somos úteis? Aquilo e precisamos não é de génios, nem de valentões ou de táticos sagazes, mas sim de homens simples, humildes e íntegros. Será que a nossa capacidade de resistência interior ao que nos tem sido imposto será suficientemente forte, e a nossa lucidês em relação a nós próprios suficientemente impiedosa para nos permitir redescobrir o caminho da simplicidade e da retidão?
Uma perspetiva a partir de baixo
O que resta é uma experiência de valor incomparável: aprendermos a ver os grandes acontecimentos da história mundial a partir de baixo, da perspetiva dos marginalizados, dos suspeitos, dos maltratados, dos impotentes, dos oprimidos, dos insultados, em suma, da perspetiva dos que sofrem. Mais importante ainda, é que nem a amargura nem a inveja venham roer o nosso coração durante este tempo em que deveríamos a olhar com novos olhos para os grandes e para os pequenos, para os felizes como para os infelizes, para os fortes como para os fracos, e que a nossa perceção de generosidade, humanidade, justiça e misericórdia devam ser renovadas, mais claras, mais livres, menos courruptíveis. Temos de aprender que o sofrimento pessoal é uma chave mais útil, um princípio mais fecundo, do que a fortuna de explorar o mundo em pensamento e ação. Esta perspetiva de baixo para cima não deve tornar-se a opção dos eternamente insatisfeitos, mas sim fazem justiça à vida, em todas as suas dimensões, a partir de uma maior satisfação, cuja fundamento está para além de qualquer visão “de baixo” ou “de cima”. Esta é a forma como o afirmamos.