O ecumenismo é o esforço para promover a unidade e a compreensão entre as diferentes denominações cristãs. Hoje, o ecumenismo é mais importante do que nunca, uma vez que as divisões religiosas continuam a causar tensão e conflito em todo o mundo. As diferenças doutrinais e as divergências históricas continuam a causar tensões e mal-entendidos entre as diferentes igrejas e é importante continuar a trabalhar em conjunto para superar estes obstáculos e construir pontes entre as diferentes famílias cristãs. Mas, apesar destes esforços para aproximar as diferentes denominações cristãs, existem ainda muitos desafios a ultrapassar.
Acontece, por vezes, que os muros que dividem os cristãos não sejam de natureza claramente teológica. Lembro-me da profunda divisão entre os cristãos americanos durante a guerra da secessão (1861-65) a propósito da abolição da escravatura. Ainda hoje nos escandaliza a conhecida “Bíblia dos escravos” (ver artigo de Silas Oliveira), uma seleção de textos que permitiam justificar, de maneira enviesada a submissão dos negros americanos. Lembro-me da adesão da Igreja Luterana alemã às teses do nacional-socialismo, aceitando a perseguição dos judeus e, mais tarde, a guerra de agressão nazi contra outros países europeus. Isso levou a que outros cristãos se separassem dos deutschen christen (cristãos alemães pró nazis). Lembro-me, igualmente, do apoio ideológico ao “apartheid” da Igreja Reformada da África do Sul, o que levou à sua exclusão da Aliança Reformada Mundial. E que pensar do ultranacionalismo das Igrejas evangélicas americana, apoiantes incondicionais de Trump, tendencialmente racistas, favoráveis ao porte de armas apesar dos inúmeros desastres humanos que estas têm provocado? Mas talvez estas referências sejam mais teológicas do que imaginamos. Com efeito, não é a primeira vez na história que a Fé cristã é subvertida por ideologias que nada têm de ver com ela, levando à divisão e, por vezes, à violência. Uma má teologia e uma teologia pervertidas não deixam de ser teologia…
Porém, a busca da Unidade não impede que os cristãos se corrijam uns aos outros. Nesta linha, apreciei bastante a carta aberta que o ex-professor de Teologia Pierre-Luigi Dubied, da Universidade de Neuchâtel, escreveu ao patriarca Cirilo, chefe da Igreja Ortodoxa russa ( Au Patriarche de Moscou et de toute la Russie, Abril de 2022 ):
“Durante pouco mais de um século, os povos sob o cuidado espiritual dos vossos antecessores têm sido sujeitos a brutalidades inauditas pelos seus governantes. V. S. sabe algo sobre isto porque, ao que parece, o seu avô também foi uma vítima dessas violências. E eis que tudo recomeça e que a pobre Rússia, após uma trégua de cerca de dez anos, vê o reaparecimento da mentira como verdade oficial, da propaganda, do entorpecimento mental, das prisões, campos, torturas, e a necessidade de acreditar absolutamente no que o regime lhe dita sob pena de lhe ser imposto pela fome, exaustão no trabalho, falta de sono e perseguição dos prisioneiros de direito comum. O regime que tão lealmente apoia, não está apenas a fazer guerra ao povo ucraniano, está também a fazer guerra ao povo russo. Basta que V. S. diga, num dos seus sermões, que há atualmente uma guerra na Ucrânia e apanhará 15 anos de prisão porque não vê as coisas como deveria.
A verdade não é apenas feita da conversa metafísica de V. S. sobre a Luz e as Trevas: ela é também constituída por factos brutos, materiais, reais. Se os enunciar, o regime ajudá-lo-á a ir além da banalidade, empurrando a sua própria consciência para o totalitarismo. V. S. tem toda razão quando pensa que em breve as pessoas começarão a detestar os russos por causa da guerra na Ucrânia. Com efeito, alguns artistas russos já foram proibidos de atuar no Ocidente, mas, aqui, cometemos um terrível erro: no calor do momento esquecemo-nos de fazer a necessária distinção entre o povo, as pessoas, um Estado e um regime. Mas também V. S. confunde tudo, o que convenientemente lhe permite evitar confrontar-se com o regime que, claramente, não gosta dos russos e mesmo, ao contrário do que nos quer fazer crer, da própria Rússia. É este ódio aos humanos que lhe permite afirmar que o delicioso Estaline deve ser honrado apesar dos poucos crimes que cometeu: no mínimo 25 milhões de mortos, não vejo do que mais precisa para qualificar um criminoso!
Termino lembrando-vos o mote de um dos mais antigos e famosos poemas da tradição francesa: “Et priez Dieu que tous nous veuille absoudre”( E rezai a Deus para que todos possamos ser absolvidos). Faço-o e peço-vos que o faça comigo. Mas não estou de modo algum seguro de que hoje isto seja suficiente.”
Os sermões “patrióticos” de Cirilo apelando à “guerra santa” ou ao Djihad, são, de facto, profundamente imorais. Eles refletem uma postura violenta que imaginávamos definitivamente superada pelo mundo cristão depois de séculos de atrocidades interconfessionais que dividiram duravelmente a Europa. Na sua obsessão anti LGBT, Cirilo reduz a crise moral das sociedades ocidentais às questões de género que as agitam, de facto, mas não como ele o supõe. Contrariamente ao que diz Cirilo não se trata de eliminar a diferenciação sexual ou de propagar a homossexualidade assimilada às práticas sexuais delituosas, como a pedofilia e as perversões sexuais, mas sim de um debate sobre a democracia, os direitos humanos e a inclusão, sobre o respeito devido às pessoas homossexuais e às que não se reconhecem no seu sexo biológico. Trata-se de impedir que preconceitos, insultos e agressões se abatam sobre pessoas discriminadas, como tem infelizmente acontecido. É isso que Cirilo parece não entender.
Esperemos que Cirilo, tão envolvido como os demais cristãos na oração pela unidade, não se tenha esquecido de ler o oráculo que precede o texto de Isaías que serviu de Tema da Semana de Oração pela Unidade dos cristãos de 2023 : “as vossas solenidades aborrecem a minha alma; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer. Pelo que, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade dos vossos atos de diante dos meus olhos: cessai de fazer o mal” (Isaías 1, 14-16)
Joel L. Pinto