Na cultura tradicional portuguesa, o protestantismo está associado à dissidência religiosa, à “heresia”. O movimento reformador, que ganhou a simpatia de Damião de Góis (1502-1574), grande humanista português, amigo de Erasmo de Roterdão e correspondente de Lutero, foi severamente combatido durante quatro séculos em nome da unidade da Igreja e da nação, sendo apenas tolerado no espaço restrito das embaixadas. Foi preciso esperar pelo fim do século XIX para que os protestantes portugueses fossem reconhecidos como cidadãos autênticos.
Neste contexto cultural, o vocábulo “ecuménico”, associado à busca da unidade dos cristãos, parece opor-se à imagem do protestante herege e anticatólico. Sendo assim, pode não deixar de ser surpreendente que os protestantes tenham sido pioneiros do ecumenismo, tanto a nível internacional como nacional…
Ora o vocábulo “ecuménico”, associado à tolerância e à busca da unidade dos cristãos, e até mesmo, para alguns, das diferentes religiões mundiais, parece opor-se a esta identidade fantasiada do protestante herege e anticatólico. Sendo assim, pode não deixar de ser surpreendente que os protestantes tenham sido pioneiros do ecumenismo, tanto a nível internacional como nacional…
A nível internacional, foram as organizações protestantes missionárias (International Missionary Council), o Movimento dos Estudantes Cristãos (Student Christian Movement), as Associações Cristãs da Mocidade (Youth Christian Movement), de parceria com as grandes Igrejas protestantes históricas, que estiveram na origem do movimento ecuménico. Por que razão? Embora a eclesiologia protestante admita a diversidade organizacional e o pluralismo doutrinal e teológico, os protestantes do século XIX consideraram que a multiplicação das denominações protestantes prejudicava a sua visibilidade e criava situações de rivalidade intoleráveis no terreno missionário. Por seu turno, Protestantes, Católicos Romanos e Ortodoxos, da primeira metade do século XX, compreenderam que a situação espiritual, social e cultural depois da Grande Guerra exigia uma nova postura resolutamente construtiva e respeitadora das identidades. Contudo, foi depois da Segunda Guerra mundial que o ecumenismo se consolidou como uma componente da reconstrução da Europa. Dois marcos importantes neste processo: a criação do Conselho Ecuménico das Igrejas pelos protestantes, anglicanos e ortodoxos (WCC, World Council of Churches) em 1948 e o Concílio de Vaticano II entre 1962-1965.
No que nos diz respeito, foram as Igrejas Presbiteriana, Lusitana e Metodista, estreitamente relacionadas com o protestantismo histórico e com o WCC, que inauguraram o ecumenismo português na década de 60, juntamente com alguns padres e leigos católicos de tendência “progressista”.
Depois de anos de crispação e de indiferença mútua, assistimos hoje em Portugal à consolidação de um catolicismo respeitador da diversidade das confissões cristãs e de um protestantismo que deixou de ser anticatólico. São boas notícias para a democracia e para o cristianismo nacional. Contudo, é difícil dizer-se que o ecumenismo autêntico se desenvolveu substancialmente. Do meu ponto de vista, a prática cidadã do respeito e da tolerância, as celebrações da Palavra e as semanas de oração são etapas necessárias, mas não suficientes. Mais do que de um ritual ecuménico precisamos de parcerias a nível da evangelização, da catequese, da formação teológica e da atividade social, tal como acontece, por exemplo, na Suíça e na Alemanha, mas também em muitos países africanos e asiáticos. É disso que carecem as igrejas portuguesas! Seria relevante que refletíssemos juntos sobre a missão da Igreja na sociedade, que os catequistas beneficiassem juntos de percursos de formação bíblica de qualidade e que as universidades católicas se preocupassem com o ensino da teologia protestante, efetuado pelos próprios protestantes. Reciprocamente, seria significativo que os Seminários e Institutos bíblicos protestantes convidassem docentes católicos romanos para ensinarem a Teologia católica. Se o intercambio de professores e estudantes, católicos, protestantes e ortodoxos, é uma realidade nas universidades europeias, isso ainda não acontece em Portugal. E também não seria notável que os católicos e os protestantes portugueses estabelecessem um objetivo anual de solidariedade com os mais necessitados, em Portugal e nos países pobres, sem se preocuparem em publicitar as suas próprias instituições? Estas parcerias seriam formadoras em termos ecuménicos e espirituais, permitindo que avançássemos concretamente para o reconhecimento mútuo e para a união “que Cristo quiser e pelos meios que ele quiser” (oração do Abade Paul Couturier, 1935).
O desequilíbrio confessional existente em Portugal entre católicos romanos e protestantes levanta inevitavelmente a questão da pertinência destas parcerias e até mesmo, para alguns, do diálogo ecuménico. Tanto mais que o protestantismo nacional é hoje maioritariamente evangelicalista [1] e de tendência fundamentalista. Também há quem veja a fecundação recíproca das diferentes confissões cristãs como uma ameaça identitária. Mas se é verdade que aprendemos a ser cristãos através das diferentes confissões cristãs, a nossa identidade é primeiramente cristã e resulta do nosso batismo. Ao recebermos a água do batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, somos cristãos antes de sermos protestantes, católicos romanos ou ortodoxos.
Reconheça-se, no entanto, que é difícil para muitos crentes evangelicalistas, certos de que a verdadeira Igreja é de natureza invisível e que a sua unidade se realiza através da conversão a Jesus Cristo e da prática quotidiana do evangelho, compreender o ideal ecuménico das Igrejas protestantes históricas vinculadas ao WCC, da ortodoxia oriental e do catolicismo romano, que, embora reconheçam o valor do ecumenismo espiritual, consideram a sinodalidade como necessária. Além disso, ortodoxos, católicos romanos e anglicanos vêem a unidade da Igreja consubstanciada na sucessão apostólica do seu magistério e aceitam dificilmente a eclesialidade de um protestantismo fragmentado…. Mil anos de separação entre a Igreja latina e as Igrejas Ortodoxas orientais, quinhentos anos de separação entre cristãos ocidentais, são períodos muito longos que afetaram profundamente o cristianismo!
Aquilo de que estamos certos é que a divisão dos cristãos não se resolve através de conversões ou da absorção de uma Igreja por outra e que há fatores culturais, políticos e sociais que são tão determinantes como as divergências teológicas. Qual poderá ser então o futuro do ecumenismo?
Na nossa perspetiva, o ideal ecuménico não é simplesmente federar as diferentes Igrejas cristãs, o que já de si seria notável, mas sim disponibilizarmo-nos para a concretização, na nossa época, da oração de Jesus pelos seus discípulos: “que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti”! (João 17:21). Ora, para atingir esta unidade/comunhão, é urgente manter os contactos, colaborar, aprofundar o diálogo, deixar de olhar para os outros como estranhos, mas sim como irmãs e irmãos em Jesus Cristo. O futuro do ecumenismo só poderá ser o reconhecimento mútuo, através da conversão das Igrejas, como afirmou João Paulo II quando visitou a Igreja Reformada Suíça, em 1984: “O facto de apreciarmos diferentemente os acontecimentos complexos do passado, tal como as diferenças que persistem nas questões centrais da nossa fé, não devem dividir-nos indefinidamente. Sobretudo, a memória dos acontecimentos do passado não deve limitar a liberdade dos nossos esforços atuais visando reparar os estragos que resultaram desses acontecimentos (…). Trata-se, para cada cristão, de operar uma profunda e contínua conversão dos corações e de tentar renovar-se continuamente através de uma fidelidade [evangélica] aprofundada. São estes, estou disso convencido, os fundamentos necessários a qualquer empenhamento ecuménico e comunitário” [2]
Joel Lourenço Pinto
[1] Do inglês evangelical. Este neo-logismo qualifica uma grande diversidade de Igrejas protestantes oriundas dos EUA e da América Latina.
[2] Citado pelo Groupe des Dombes : “ Pour la conversion des Eglises: identité et changement dans la dynamique de communion”, Paris, Centurion, 1991