Este texto é uma breve introdução ao pensamento de um intelectual praticamente desconhecido em Portugal. Faço-o porque redescobri Jacques Ellul (1912-1994) nestes últimos anos, e porque que o seu pensamento, extremamente livre e atual, merece ser redescoberto por todos nós. Esta referência a uma personagem do século passado pode parecer surpreendente à maioria dos leitores. Lembro, no entanto que o célebre escritor britânico Aldous Huxley se orgulhava de ler Ellul e que ele disse, em 1960, que o livro “A técnica ou o desfio do século” expunha rigorosamente aquilo que ele próprio anunciava no seu romance de antecipação “Admirável Mundo Novo”. De facto, poucos foram os que se deram conta da pertinência do pensamento de Jacques Ellul, a não ser os espíritos mais lúcidos dessa época e os estudantes que tiveram o privilégio de beneficiar do seu ensino em Bordéus. Mas como seria de outro modo numa época de grande progresso económico, de transformações tecnológica e de globalização do sistema financeiro, que auguravam amanhãs mais felizes?
O homem
Jacques Ellul nasceu em Bordéus a 6 de janeiro de 1912, e passou quase toda a sua vida na região da Aquitânia, em Bordéus, no sudoeste de França. Ele gostava de dizer que a sua vida ilustrava o conceito de “pensar globalmente, agir localmente”, lema que lhe foi atribuído, tendo-se-lhe mantido fiel ao longo da sua vida. As origens de Ellul são modestas: o pai, um emigrante vindo de Trieste, era comerciante de vinhos, e a mãe de ascendência francesa e portuguesa (família Mendes), era professora de desenho.
Trata-se de um pensador original, inclassificável, cuja obra literária é verdadeiramente impressionante. Ele lutou contra as ideias “politicamente corretas” e criticou implacavelmente aqueles que acreditavam na neutralidade da tecnologia e se recusavam a admitir a ameaça do sistema técnico para o nosso futuro imediato. A sua obra literária também aborda questões éticas, filosóficas e teológicas. Apesar de ser um simples membro da Igreja Reformada francesa e autodidata em teologia, Ellul foi considerado, sobretudo nos Estados Unidos, como um dos teólogos moralistas europeus mais influentes, defendendo a necessidade de agirmos de maneira coerente com a nossa fé e consciência, de maneira compatível com a manutenção de uma vida humana genuína. Não foi educado religiosamente, mas beneficiou de uma experiência mística, aos 18 anos de idade, que o levou a converter-se ao protestantismo.
Um protestante libertário e visionário
Aluno brilhante, doutorou-se em 1936 com uma tese sobre a história e a natureza jurídica do Municipium. Ele ensinou na Faculdade de Direito de Montpellier de 1937 a 1938 antes de ser contratado em Estrasburgo e, posteriormente, em Clermont-Ferrand. Porém, foi demitido pelo governo Vichy em 1940 devido ao facto do seu pai ser “estrangeiro”. Durante a Segunda Guerra Mundial, Ellul mudou-se para a aldeia de Martres, envolvendo-se na Resistência ao invasor nazi e cultivando a terra para sustentar a família. A sua casa foi o centro de uma rede de resistentes formado por antigos escuteiros e por membros da Igreja Reformada de França. Aí, Ellul acolhe fugitivos, falsifica documentos e ajuda judeus (foi proclamado Justo de entre as nações pelo memorial israelita Yad Vashem, em 2001). Apesar do governo de Vichy se opor à sua nomeação, Em 1943 foi escolhido como professor catedrático de Direito Romano e de História do Direito pela Universidade de Bordéus. A partir de 1944 ensina a História das Instituições e, a partir de 1948, ensina igualmente no Instituto de Ciências Políticas de Bordéus
Após a guerra, foi vice-presidente da Câmara Municipal de Bordéu, cargo que abandonou seis meses depois por não concordar com a gestão expeditiva de dossiês importantes, que ele não tinha nem meios nem tempo para examinar. Foi uma experiência política traumatizante que ele recordará amargamente. Manteve-se, porém, bastante ativo a nível cívico, participando na prevenção da delinquência juvenil e na proteção do litoral aquitano. Buscou encarnar o seu conceito cristão de “presença no mundo moderno” (título de um dos seus livros) e foi membro do Conselho Executivo Nacional da Igreja Reformada de França (Sínodo nacional) entre 1956 e 1971, tendo como projeto para a sua Igreja transforma-la num “movimento ativo e pertinente no interior da sociedade”. Mas também ficou desiludido com esta experiência institucional, que o confrontou ao aburguesamento da sua Igreja. Em dois livros “A Subversão do Cristianismo” (1984) e “Anarquia e Cristianismo” (1988), Ellul considera que, desde o século IV, as organizações eclesiásticas perverteram a mensagem de Jesus fazendo do Cristianismo um instrumento de opressão. De maneira polémica afirmava que o Cristianismo nunca chegou a ser cristão e que o Evangelho estava mais próximo da anarquia do que do sistema de cristandade. Via a Bíblia como um livro libertário. Mas rejeitava o anarquismo violento.
O seu pensamento teológico foi muito influenciado pelas leituras do filósofo Kierkegaard e de Karl Barth, grande teólogo Reformado suíço, tendo escrito livros e artigos sobre ética cristã, eclesiologia, exegese e espiritualidade. Embora não tivesse estudado teologia formalmente, conhecia bastante bem as línguas bíblicas, os Padres da Igreja e os Reformadores. Mas criticava de maneira particularmente incisiva a cristandade histórica e o cristianismo contemporâneo, que se tinham desviado da mensagem original de Jesus, subvertendo-a ao fazer dela uma ideologia ao serviço dos poderosos. Considerava-se ele próprio como um cristão-anarquista, adversário de todas as formas de dominação, quer sejam burguesas, bolcheviques, fascistas ou neocapitalistas. Acreditava que a tecnologia tinha se tornado uma força dominante na sociedade moderna e buscou entender como é que a fé poderia ajudar a orientar a humanidade num mundo tecnológico, a fim de equilibrar a influência da tecnologia na sociedade.
Fervente leitor da Bíblia e de Karl Marx (ensinou o pensamento marxista durante mais de trinta anos na Universidade), estabeleceu uma ponte crítica entre cristianismo e marxismo. Opositor acérrimo do comunismo, Ellul considerava que, tal como o cristianismo tinha sido pervertido, também o pensamento de Marx tinha perdido a sua vitalidade nas mãos dos comunistas, tendo-se tornado numa ideologia “fossilizada”.
Autor de uma obra monumental de mais de 50 livros traduzidos em doze línguas e de quase mil artigos e inúmeras conferencias, Jacques Ellul influenciou sobretudo os seus contemporâneos através das seguintes obras: “La téchnique ou l’enjeu du siècle” (1954, trad. A técnica ou desafio do século”, “Le bluff téchnologique” (1988, trad. O bluff tecnológico) e, em teologia, “Présence au monde moderne : problèmes de la civilisation post-chrétienne” (1948, trad. Presença no mundo moderno : problemas da civilização pós-cristã), “Ethique de la liberte” (3 vols, 1973-1984, trad. Ética da liberdade) et “L’Espérance oubliée” (1972, trad. A esperança esquecida). Este último era o livro de que mais se orgulhava. O crítico social norte americano Neil Postman, autor de “Technopoly: The Surrender of Culture to Technology (1993), considera-se grandemente devedor do seu pensamento. O mesmo acontece com Herbert Schlossberg, eminente historiador americano, o filósofo Paul Ricoeur, o sociólogo Jean Baubérot e os teólogos americanos Thomas Berry e William T. Cavaugh (católicos), tal como John Yoder e Stanley Hauerwas (protestantes). Muitos ativistas ambientais europeus aderiram com entusiasmo às teses de Ellul sobre o consumismo e o diktat da técnica na sociedade atual. É também importante notar que as ideias de Jacques Ellul influenciaram muitos movimentos sociais e políticos, tais como o anarquismo, o pacifismo e o movimento dos direitos civis.
Existir é resistir
Ellul referia-se frequentemente a esta divisa porque, para ele, viver autenticamente é resistir ao conformismo social, aos lugares-comuns.
Juntamente com o seu amigo Bernard Charbonneau, um intelectual bordelês protestante, como ele, verdadeiros pioneiros da ecologia política, levou a cabo uma crítica “libertária/anarquista” do pensamento personalista incarnado por Emmanuel Monnier e Denis de Rougemont. Jacques Ellul et Charbonneau queriam que a revista “Esprit” (a publicação editada por Mounier) fosse a voz de um movimento verdadeiramente revolucionário, enraizado regionalmente e baseado em pequenos grupos autogeridos, em vez de ser uma mera publicação intelectual parisiense.
Muito antes da expansão da biotecnologia, da informática e das redes sociais, Jacques Ellul já alertava para os riscos societais de um sistema técnico determinista e cego, subordinado às forças económicas e financeiras. O que Ellul chamava de “bluff tecnológico” era um sistema que pretendia convencer as pessoas da inevitabilidade da fabricação de cada vez mais objetos tecnológicos (gadgets), cuja utilidade era duvidosa. O filósofo defendia a necessidade de usar a tecnologia a favor da vida e de nos esforçarmos para cuidarmos do planeta e do futuro da humanidade. Essa responsabilidade, que foi mais tarde desenvolvida pelo filósofo Hans Jonas, está no cerne do pensamento elluliano: agir de modo que os efeitos das nossas ações sejam compatíveis com a manutenção da vida humana genuína.
No plano universitário, o seu campo de investigação foi a filosofia do direito, a história das ideias e a sociologia. Daí ele ser considerado mais como filósofo do que jurista. O seu ensino marcou duravelmente os seus estudantes, de tal modo que as ideias ellulianas perduram ainda hoje.
Jean-Luc Porquet [1], conhecido escritor e jornalista parisiense, que lhe dedicou dois livros, diz que Ellul é o homem que tinha previsto “praticamente tudo” sobre o nuclear, as nanotecnologias, as OGM, a propaganda e o terrorismo, numa época em que esses temas passavam despercebidos nos meios de comunicação.
Jacques Ellul morreu em 19 de Maio de 1994, rodeado por seus entes queridos, após uma longa doença que confirmou sua preocupação com a ambivalência do progresso tecnológico. Como disse ao jornal “Le Monde”, em 1981, “Descrevo um mundo sem saída, convencido de que Deus acompanha o homem ao longo da sua história”.
[1] « Jacques Ellul, L’homme qui avait presque tout prévu », Le Cherche-midi, 2012 ; « Jacques Ellul, la démesure technicienne », in Radicalités, 20 penseurs vraiment critiques, L’Échappée, 2013.
Fontes :
Frédéric Rognon « Jacques Ellul, une pensée en dialogue », Labor et Fides, Genève, 2007
Patrick Chastenet “Introduction à Jacques Ellul”, La Découverte, Paris, 2019.
Nota – Quem compreender a língua francesa pode visionar no youtube várias entrevistas e conferências de Jacques Ellul.
Bibliografia de Jacques Ellul em português (citadas na Wikipedia) :
- La technique ou l’enjeu du siècle (1954): “Técnica e o desafio do século” (tradução: Roland Corbisier, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968);
- L’homme et l’argent (1954): “O Homem e o Dinheiro: aprenda a lidar com a origem” (tradução: Anna ABM Silva et LFMO Carvalho, Palavra, 2009);
- Propagandes (1962): “Propagandas: uma análise estrutural” (tradução: Miguel Serras Pereira, Lisboa, Antígona, 2014);
- Politique de Dieu, politiques des hommes (1966): “Política de Deus Política do Homem” (tradução: Cássio Murilo Dias, São Paulo, Fonte Editorial, 2006);
- L’Apocalypse. Une architecture en mouvement (1975): “Apocalipse, Arquitetura em Movimento” (tradução: Maria Luísa de Albuquerque, São Paulo, Edições Paulinas, 1979);
- La parole humiliée (1981): “A palavra humiliada” (tradução: Maria Cecília de M. Duprat, São Paulo, Paulinas, 1984);
- Changer de révolution. L’inéluctable prolétariat (1982): “Mudar de revolução: o inelutável proletário” (tradução: Herbert Daniel e Cláudio Mesquita, Rio de Janeiro, Rocco, 1985);
- Anarchie et christianisme (1988): “Anarquia e cristianismo” (traduçöes: Filipe Ferrari, Digital, 2009, e Norma Braga, São Paulo, Garimpo, 2010).