A história moderna da África do Sul pode ser condensada no sentido sucessivamente atribuído a uma data que é feriado nacional – 16 de Dezembro.
No princípio do séc. XIX, milhares de camponeses (Boers) da primeira colonização holandesa, descontentes com a crescente dominação britânica na Colónia do Cabo, partiram para o interior, em busca de espaço onde pudessem cultivar a terra e criar gado. Estes Voortrekkers (pioneiros) nem sempre encontraram vazia a sua “Terra Prometida” e, como é habitual nestes casos, umas vezes negociaram a sua presença, outras lutaram para a impor.
Em fevereiro de 1838, uma centena de Boers que parlamentava com o rei Dingaan, em pleno território Zulu, foi massacrada. Uma expedição punitiva foi organizada sob o comando de Andries Pretorius. No dia 15 de dezembro, quando estavam acampados nas margens do Rio Ncome, chegou notícia de que milhares de Zulus se aproximavam.
Pretorius escolheu um ponto de boa defesa natural, junto do rio, e formou um círculo com as carroças cobertas. Num culto de véspera de batalha, os Voortrekkers pediram a protecção de Deus e declararam solenemente um pacto de guardar, daí em diante, um dia de acção de graças pela vitória.
A fortaleza improvisada (laager) resistiu; embora os Boers fossem menos de 500 e os guerreiros Zulus mais de 10.000, foram estes que acabaram por perder, deixando mais de 3.000 mortos no terreno. O rio passou a ser chamado Bloedrivier (Rio de sangue).
É preciso acrescentar que os brancos sitiados tinham aras de fogo (mosquetes) e duas pequenas peças de carregar pela boca. Os Zulus combatiam com escudos e zagaias. Mas a situação vivida naquela data tornou-se um elemento fundamental da identidade Afrikaans: sozinhos em terra hostil, firmes na fé, determinados no centro de um laager sem brechas, portadores de uma missão…
O 16 de Dezembro foi chamado popularmente, durante muito tempo, Dingaan’s Day, e Desmond Tutu conta que os negros não se atreviam, naquela data, a deixar os seus bairros, por receio de violência racista. A partir de 1952, o regime do apartheid deu-lhe o título mais nobre de Day of the Covenant, e depois de 1980 o de Day of the Vow, para sublinhar o pacto solene que estava na sua origem.
Durante décadas, o imponente Monumento aos Voortrekkers, erigido perto do local da batalha, ficou como símbolo da resistência Afrikaans. Mas em 1998 foi inaugurado, do outro lado do rio, o Monumento Ncome (nome original do rio de sangue), em memória dos guerreios Zulus caídos.
Com a democratização do regime, 16 de dezembro passou a ser o Dia da Reconciliação. A Comissão Verdade e Reconciliação, cuja presidência Nelson Mandela confiou ao Arcebispo Desmond Tutu, teve a sua sessão inaugural em 16 de dezembro de 1995.
Silas Oliveira
Publicado inicialmente na Revista Janus 2007 – Universidade Autnónoma de Lisboa