Carta de Sigismundo Freud a Alberto Einstein

(…) [Você] começa por se interrogar sobre o direito e a força. É certamente o ponto de partida correto para a nossa investigação. Permito-me tomar a liberdade de substituir a palavra “força” pelo termo mais incisivo e duro de “violência”: O direito e a violência são atualmente antinómicos para nós. Mas é fácil mostrar que um é derivado do outro.

(…) Os conflitos de interesse que surgem entre as pessoas são, portanto, resolvidos em princípio pela violência. É este o caso em todo o reino animal, do qual o homem não se pode excluir; no caso do homem, também existem conflitos de opinião que ascendem aos níveis mais elevados da abstração e cuja solução parece exigir uma técnica diferente. Mas esta complicação só apareceu mais tarde.

Originalmente, numa pequena horda, era a superioridade da força muscular que decidia o que devia pertencer a um ou a outro, ou cuja vontade devia ser aplicada. A força muscular foi secundada e rapidamente substituída pelo uso de utensílios (…). A intervenção da arma marca o momento em que a supremacia intelectual começa a substituir a força muscular; o objetivo final da luta permanece o mesmo: uma das partes em luta deve ser forçada, pelos danos que sofre e pelo estrangulamento das suas forças, a abandonar as suas reivindicações ou a sua oposição.

(…) Este procedimento oferece duas vantagens: o adversário não pode retomar o combate noutra ocasião e o seu destino dissuadirá outros de seguirem o seu exemplo. Além disso, a matança do inimigo satisfaz uma disposição instintiva, à qual voltaremos. Por vezes, (…) a violência contenta-se em escravizar em vez de matar. É assim que se começa a poupar o inimigo, mas o vencedor tem então de contar com a sede de vingança do vencido e abdica de parte da sua própria segurança.

Sabemos que este regime mudou ao longo da evolução e que um caminho levou da violência à lei, mas qual deles? Existe apenas um, na minha opinião, e é o que leva ao facto de se poder competir com uma pessoa mais forte pela união de várias pessoas mais fracas (…). Vemos então que a lei é a força de uma comunidade. Continua a ser uma violência, sempre pronta a voltar-se contra qualquer indivíduo que lhe resista, trabalhando com os mesmos meios, empenhado nos mesmos objetivos; a diferença reside, na realidade, apenas no facto de já não ser a violência do indivíduo que triunfa, mas a sim a violência da comunidade.

Mas para que esta transição da violência para a o direito tenha lugar, uma condição psicológica deve ser satisfeita: A união do número deve ser estável e duradoura. (…). A comunidade deve ser permanentemente mantida, organizada, estabelecer regulamentos ou leis que impeçam insurreições perigosas, designar os órgãos que zelam pela manutenção desses mesmos regulamentos e assegurarem a execução de atos de violência que estejam em conformidade com essas leis. O reconhecimento de tal comunidade de interesses leva à formação de laços sentimentais e de assentimento comunitário entre os membros de um grupo (…).

A situação é simples, desde que a comunidade seja constituída apenas por um número de indivíduos de igual força. As leis desta associação determinam então, no que diz respeito às manifestações violentas de força, a parte da liberdade pessoal de que o indivíduo deve abdicar para que a vida em comum possa prosseguir em segurança.

Mas tal estado de tranquilidade é apenas teoricamente concebível; de facto, o curso das coisas torna-se mais complicado, porque a comunidade, desde o início, contém elementos de poder desigual – homens e mulheres, pais e filhos – e logo a guerra e a submissão criam vencedores e vencidos, que se tornam senhores e escravos. A lei da comunidade será, então, a expressão destas desigualdades de poder, as leis serão feitas por e para os dominadores, e poucas prerrogativas serão deixadas aos súbditos.

A partir daí, a ordem jurídica está exposta a perturbações de duas fontes: em primeiro lugar, as tentativas de um ou outro dos soberanos de ultrapassar as restrições aplicadas a todos os seus iguais, de regressar, portanto, do reinado da lei ao reinado da violência; em segundo lugar, os esforços constantes dos súbditos para alargar o seu poder e para que estas modificações sejam reconhecidas na lei, exigindo a passagem de uma lei desigual para uma lei igual para todos.

Uma autoridade suprema

Vemos, então, que mesmo dentro de uma comunidade, o recurso à violência não pode ser evitado como solução dos conflitos de interesse. Mas as necessidades, as comunidades de interesse decorrentes de uma existência comum no mesmo solo, aceleram o apaziguamento destas lutas e, sob tais auspícios, as possibilidades de soluções pacíficas aumentam constantemente. Mas basta olhar para a história da humanidade para ver um desfile ininterrupto de conflitos, seja entre uma comunidade e um ou mais agrupamentos, entre unidades grandes ou pequenas, entre cidades, países, tribos, povos, impérios, conflitos que são quase sempre resolvidos pelo teste da força no decurso de uma guerra. Tais guerras terminam invariavelmente em pilhagem ou em completa submissão, na conquista de uma das partes.

(…) A guerra só pode ser evitada, certamente, se os homens concordarem em estabelecer uma autoridade central para a qual todos os conflitos de interesse são remetidos. Neste caso, duas coisas são necessárias: criar uma tal autoridade suprema e dotá-la da força apropriada. Sem esta última, a primeira não tem qualquer utilidade. A Liga das Nações, por exemplo, foi concebida como uma autoridade suprema, mas a segunda condição nunca foi preenchida. A Liga das Nações não tem poder próprio e só o pode obter se os membros da nova associação, os Estados individuais, o concederem. E há pouca esperança, neste momento, de que isso aconteça.

(…) No nosso tempo, não há nenhum conceito ao qual possa ser atribuído uma autoridade conciliadora. Os ideais nacionais que governam atualmente os povos, incitam a oporem-se uns aos outros, como é demasiado claro. Não faltam pessoas que supõem que só a expansão universal da ideologia bolchevista pode pôr fim às guerras, mas ainda estamos muito longe de um tal resultado que talvez só pudesse ser alcançado após terríveis guerras civis. Parece, portanto, que a tentativa de substituir o poder da força física pelo poder das ideias está, por enquanto, condenada ao fracasso. É um erro de cálculo ignorar o facto de que o direito foi originalmente força bruta, e que ainda não pode dispensar o uso da força.

Pulsão de vida, pulsão de morte

(…) Você surpreende-se que seja tão fácil excitar os homens para se guerrearem e presume que há neles um princípio ativo, um instinto de ódio e de destruição pronto a acolher este tipo de excitação. Acredito, no que me diz respeito, na existência de tal inclinação e tenho tentado, durante os últimos anos, estudar as suas manifestações. (…) Admito que os instintos humanos se enquadram exclusivamente em duas categorias: por um lado, aqueles que querem preservar e unir (chamemos-lhes eróticos, exatamente no sentido de eros no Symposion de Platão, ou sexuais, dando explicitamente a este termo a dimensão do conceito popular de sexualidade); por outro lado, aqueles que querem destruir e matar (incluímo-los sob os termos de impulso agressivo ou destrutivo).

Em suma, como sabe, isto é apenas a transposição teórica do antagonismo universalmente conhecido que existe entre o amor e o ódio, que é talvez uma forma da polaridade atração/repulsa que desempenha um papel no seu próprio campo de investigação. Mas não nos faça avançar demasiado depressa para as noções de bem e de mal. Estes impulsos são igualmente indispensáveis; é a partir da sua ação combinada ou antagónica que surgem os fenómenos vitais.

(…) Se continuar a seguir-me, verá que as ações humanas revelam ainda uma complicação de outro tipo. É raro que um ato resulte de um único incentivo instintivo, que em si mesmo deve ser um composto de eros e de destruição. Em regra geral, vários motivos, igualmente associados, devem coincidir para levar a cabo a ação.

Quando os homens são incitados a guerrear-se, toda uma série de motivos pode encontrar neles um eco. Alguns são nobres, outros vulgares, outros falados abertamente e outros mantidos em silêncio. Não temos razões para os enumerar a todos. A inclinação para a agressão e destruição é obviamente um deles: inúmeras crueldades que nos são relatadas na história e na vida quotidiana confirmam a sua existência. (…) Por vezes, quando ouvimos falar das crueldades da história, temos a impressão de que os motivos idealistas serviram apenas de biombo para esconder os apetites destrutivos; noutros casos, se estamos a lidar, por exemplo, com as crueldades da Santa Inquisição, pensamos que os motivos idealistas surgiram na mente consciente, e que os motivos destrutivos lhes deram, nessa mente inconsciente, uma força adicional. Ambas as possibilidades são plausíveis.

(…) Com um pouco de esforço especulativo, chegámos a conceber que este impulso age em cada ser vivo e tende a condená-lo à ruína, a reduzir a vida a matéria inanimada. Tal inclinação mereceria verdadeiramente o nome de instinto de morte, enquanto os impulsos eróticos representam as pulsões pulsão de vida. A pulsão de morte torna-se um impulso destrutivo pelo facto de ser externalizado, com a ajuda de certos meios, contra os objetos desse mesmo impulso.

Mas uma parte do instinto de morte permanece ativa dentro do sujeito. Temos tentado derivar toda uma série de fenómenos normais e patológicos desta reversão interior do impulso destrutivo. Até cometemos a heresia de explicar a origem da nossa consciência por uma destas inversões internas da agressividade (…) Isto pode servir de desculpa biológica para todas as inclinações odiosas e perigosas contra as quais lutamos. Mas devemos, no entanto, admitir que estão mais próximos da natureza do que a resistência que lhes opomos e para a qual ainda temos de encontrar uma explicação

(…) Para voltarmos ao nosso assunto, concluímos que seria inútil pretender suprimir as tendências destrutivas dos homens. Nalguns raros locais felizes da Terra, onde a natureza oferece tudo aquilo de que o homem precisa, deve haver povos cuja vida flui suavemente e que não conhecem nem a coerção nem a agressão. Mal posso acreditar nisso e ficaria feliz em saber um pouco mais sobre seres tão bem-aventurados…

(…) Podemos facilmente chegar a uma fórmula que prepara indiretamente o caminho para a luta contra a guerra. Se a propensão para a guerra é um produto do impulso destrutivo, há, portanto, razões para apelar ao adversário desta inclinação, apelar ao eros. Tudo o que gera laços sentimentais entre os homens insurge-se contra a guerra.

Ces liens peuvent être de deux sortes. En premier lieu, des rapports tels qu’il s’en mani­feste à l’égard d’un objet d’amour, même sans intentions sexuelles. La psychanalyse n’a pas à rougir de parler d’amour, en l’occurrence, car la religion use d’un même langage : aime ton prochain comme toi-même. Obligation facile à proférer, mais difficile à remplir. La seconde catégorie de liens sentimentaux est celle qui procède de l’identification. C’est sur eux que repose, en grande partie, l’édifice de la société humaine. (…) Estes laços podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar, relações como as que se manifestam em relação a um objeto de amor, mesmo sem intenções sexuais. A psicanálise não tem motivos para se envergonhar de falar de amor neste caso, porque a religião usa a mesma linguagem: ama o teu próximo como a ti mesmo, obrigação que é fácil de dizer, mas difícil de cumprir! A segunda categoria de laços sentimentais é a que provém da identificação. É sobre eles que repousa, em grande medida, o edifício da sociedade humana.

(…) [Mas] porque é que gritamos contra a guerra, você e eu e tantos outros connosco, porque é que não a assumimos como uma das incontáveis vicissitudes da vida? A guerra parece estar de acordo com a natureza, biologicamente bem fundamentado, e, na prática, quase inevitável. Não fique escandalizado com a pergunta que lhe faço aqui (…) …

A resposta é esta: [gritamos] porque cada homem tem direito à sua própria vida, porque a guerra destrói vidas humanas cheias de promessas, coloca o indivíduo em situações que o desonram, o obriga a matar o seu vizinho contra a sua própria vontade, destrói valores materiais preciosos e os produtos da atividade humana, etc. Pode ainda acrescentar-se que a guerra na sua forma atual já não oferece qualquer oportunidade para a manifestação do antigo ideal de heroísmo, e que a guerra de amanhã, como resultado da perfeição dos dispositivos de destruição, equivaleria ao extermínio de um ou talvez mesmo de ambos os adversários.

(…) Quero ainda acrescentar que creio que a razão essencial pela qual nos pronunciamos contra a guerra é que não podemos fazer de outra maneira. Somos pacifistas porque temos de ser pacifistas em virtude de motivações interiores. Agora, já é mais fácil justificarmos a nossa atitude com argumentos. (…) Isto não é sem explicação, mas eu acrescentaria que desde tempos imemoriais, a humanidade tem beneficiado do fenómeno do desenvolvimento da cultura (sei que algumas pessoas preferem usar aqui o termo civilização.) É a este fenómeno que devemos o melhor daquilo de que somos feitos e muito daquilo de que sofremos. As suas causas e origens são obscuras, o seu resultado é incerto e algumas das suas características são facilmente discerníveis.

(…) As transformações psíquicas que acompanham o fenómeno da cultura são óbvias e inconfundíveis. Consistem num esvaziamento progressivo de fins instintivos, juntamente com uma limitação das reações impulsivas. Sensações que, para os nossos antepassados, estavam carregadas de prazer, tornaram-se indiferentes e mesmo intoleráveis para nós; existem razões orgânicas para a transformação das nossas aspirações éticas e estéticas.

(…) E agora, quanto tempo levará para que outros, por sua vez, se tornem pacifistas? É impossível dizer, mas talvez não seja utópico esperar que estes dois elementos, a conceção cultural e o medo justificado das repercussões de uma futura conflagração, trabalhem em conjunto para pôr fim à guerra num futuro próximo. Por que caminhos ou desvios, não podemos adivinhar. Entretanto, podemos dizer a nós próprios que tudo o que atua no sentido do desenvolvimento da cultura também opera contra a guerra.

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