Ficou conhecido por contestar o dogma da infalibilidade papal e o sistema eclesiástico de poder. Por via disso, facilmente era catalogado como “polémico”, “crítico” ou “contestatário”. Mas essa era apenas a imagem imediata de Hans Küng, teólogo suíço-alemão que morreu nesta terça-feira, 6 de Abril, aos 93 anos e foi um dos maiores e mais completos teólogos cristãos das últimas seis décadas
No final de 1979, quando foi suspenso pelo Vaticano da sua missão de professor de teologia católica na Universidade (pública) de Tubinga, onde leccionava, o teólogo, então com 51 anos, passou o tempo “mais cruel” da sua vida – dizia em entrevista, em 1999. Mesmo assim, não abdicou do seu ministério de padre e, menos ainda, da sua fé cristã: “Para mim, Jesus Cristo é um caminho de vida. Segui-lo é continuar a descobrir um sentido para a minha vida, o meu sofrimento e a minha luta, é um excelente modo de continuar, neste tempo, a encontrar a salvação”, afirmava, numa entrevista que lhe fiz em Junho de 2010, para o Público.
Entre as suas obras maiores estão Ser Cristão, Existe Deus?, A Igreja, Infalível – Uma Pergunta, O Cristianismo – Essência e História (ed. Temas e Debates), Islão – Passado, Presente e Futuro (Edições 70), Judaísmo – Entre Ontem e Hoje, ou ainda Aquilo em que Creio (ed. Temas e Debates). Dos seus livros, apenas alguns títulos (incluindo alguns que aqui não se referem) se encontram disponíveis em português (e em Portugal), mas os livros mais importantes estão publicados em espanhol, francês ou inglês. Nos últimos anos, já fragilizado, Küng deixou de publicar, não sem antes ter escrito um breve ensaio com o título Uma Boa Morte (ed. Relógio d’Água), onde defende a possibilidade de a pessoa morrer consciente e não se sujeitar a sofrimentos intoleráveis.
Aliás, numa outra conversa que o padre e professor de filosofia português Anselmo Borges teve com ele, em 1979, tempos antes de ser suspenso, o próprio Küng explicava o seu “fascínio” por Jesus: “Para mim, ser cristão tem ainda hoje sentido, pois, com o cristianismo, pode-se ser Homem num sentido mais profundo e radical. Esta afirmação já não é suspeita, pois foi feita também – é com alegria que o digo – pelo novo Papa [João Paulo II].” E explicava: “Escrevi um livro com o título Ser Cristão. Ora, alguns criticaram-no, porque diziam que nele se falava demasiado do Homem. Mas hoje vê-se cada vez melhor que o cristianismo não é uma pura ideologia para si mesmo. A Igreja não tem a sua finalidade em si mesma. O cristianismo deve ajudar o Homem a ser Homem melhor e mais radicalmente.”
Infalibilidade, obstáculo à unidade
Seria precisamente essa centralidade de Jesus Cristo na sua fé a levá-lo a pôr em causa o sistema eclesiástico de poder. E foi isso que fez com que, em 1979, a Congregação para a Doutrina da Fé, o suspendesse da sua função de professor de teologia. Mas haveria, pensava o próprio Küng, outra razão imediata: num artigo que publicara no New York Times e Le Monde, intitulado Um ano de João Paulo II, ele criticava “o fundamentalismo do Papa polaco”, cujo pontificado começara “de um modo muito carismático, mas que mostrou desde os primeiros dias o seu dogmatismo, moralismo, absolutismo, por causa dos quais a Igreja Católica” continuava a sofrer duas décadas depois, como ele dizia em 1999.
A sua contestação ao dogma da infalibilidade papal, proclamada em Julho de 1870 no primeiro Concílio do Vaticano, repousava sobre uma outra ideia: hoje, esse é o principal obstáculo à unidade entre as duas grandes tradições cristãs do Ocidente. Uma convicção que vinha de mais longe: aos 29 anos, na sua tese sobre A Justificação, Küng escrevia que não havia razões teológicas para católicos e protestantes continuarem separados. E, em 1997, 40 anos depois da sua tese, um documento conjunto e oficial assinado pelo Vaticano e pelas igrejas luteranas, viria a dar-lhe razão – e contentamento.
O balanço do sucedido em 1979 era misto: “A intenção do Vaticano foi marginalizar-me, mas o que aconteceu foi o contrário: continuo membro da Igreja Católica, sou padre, e penso que represento a maior parte dos católicos – pelo menos nos países germânicos. Esse tempo mais cruel foi também um tempo de graça, porque me tornou livre para novas aventuras na teologia, que teriam sido impossíveis, na sua extensão e profundidade, sem esses acontecimentos.”
Quando as suas novas aventuras teológicas o levaram a criar o Instituto para a Ética Global e o seu Instituto para a Pesquisa Ecuménica ficou independente da faculdade católica, o teólogo passou também a desenvolver trabalho e investigação na área da ética mundial, como se recorda em outro texto no 7MARGENS.
Um dos resultados seria a publicação do Projecto Para Uma Ética Mundial (ed. Instituto Piaget). Nessa obra, Küng defende o papel das religiões na construção de uma nova ética global. Uma espécie de teologia ecuménica para a paz e para a sobrevivência da própria humanidade: “O que defendo não é uma utopia idealista, mas uma esperança realista, que resumo em quatro frases: não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões sem diálogo inter-religioso; não haverá um diálogo eficaz entre as religiões sem posições éticas comuns para o nosso mundo; não haverá sobrevivência do planeta sem uma ética global.”
Para Hans Küng também neste âmbito era muita clara a tradução da sua profunda convicção cristã – presente no livro Ser Cristão, como o próprio recordava na citada conversa com Anselmo Borges: “Esta é uma visão que está enraizada na minha fé cristã católica, mas que pode ser partilhada por pessoas de diferentes religiões, e por crentes e descrentes.”
A proposta desta ética global tem muito claros os riscos que devem ser prevenidos: “Temos que evitar duas atitudes erradas: uma, à direita, é o fundamentalismo que defende cada verdade como absoluta; outra, à esquerda, é o sincretismo e o relativismo que aceita que todas as religiões são iguais. É possível estar enraizado na sua fé e respeitar, não denegrir, os outros”, dizia, em 2010. “Mas, para evitar o sincretismo, é preciso conhecer alguma coisa das outras religiões. As pessoas que têm medo do sincretismo não sabem nada das outras religiões e, muitas vezes, nem sequer sabem nada da sua. Quando se estudam as diferentes religiões, descobre-se que as posições éticas básicas são muito similares, apesar das diferenças dogmáticas.”
Tentar mudar dois paradigmas
A crítica contundente de Hans Küng ao centralismo do Vaticano – “este sistema tem que mudar”, dizia – fundava-se na história: o II Concílio do Vaticano só chegara à ideia da colegialidade, “que foi um grande passo”, mas mesmo essa palavra era odiada em Roma, dizia. E esse facto traduzia – como resumia na entrevista de 1999 antecipando o conteúdo de um dos seus livros mais importantes, O Cristianismo – um dos cinco paradigmas cristãos: “O judeo-cristianismo, o paradigma helénico e eslavo, o latino ou católico-romano da Idade Média, o paradigma da Reforma protestante e o moderno e pós-moderno.”
Se era verdade que na ortodoxia oriental muitos “permanecem no paradigma dos padres gregos do século IV e V e muitos protestantes também ainda vivem no século XVI, rejeitando Darwin e Copérnico”, o problema católico é outro: em muitos casos, vive-se ainda no paradigma romano e latino, “elaborado pela teologia de Santo Agostinho e dos papas do século V e VI”, que seria depois o “paradigma anti-Reforma e anti-moderno”.
O que se passou no Concílio Vaticano II, entre 1962-65, foi uma tentativa de “concretizar duas mudanças de paradigma simultâneas: o da Reforma (adopção das línguas vernáculas, descentralização, papel dos leigos, igrejas locais) e o moderno, com a liberdade religiosa, os direitos humanos, uma nova abertura à ciência e à evolução”.
Este processo levou a “uma tremenda batalha, porque esta era uma pedra angular” e a uma “situação ambivalente”: sob o pontificado de João Paulo II, a Cúria Romana continuava “a tentar impor o paradigma medieval, anti-Reforma e anti-moderno, enquanto muita gente quer continuar em frente, a partir do forte acontecimento que foi o Concílio Vaticano II”, dizia Küng.
“Nada mais se nos depara a não ser uma pessoa”
Considerando-se “um teólogo católico, que ao mesmo tempo é ecuménico”, justificava: “Não há contradição em estar enraizado na fé cristã e, ao mesmo tempo, ter uma abertura ilimitada para os outros. Mesmo para os indiferentes.
O “triálogo” que propunha a partir das obras sobre o judaísmo, o cristianismo e o islão era claramente possível, defendia. Mas com razoabilidade: “Se formos às origens, veremos que o judeo-cristianismo é muito semelhante ao judaísmo e também ao islão”, afirmava ele, em 2010, numa outra entrevista que lhe pude fazer, a propósito da publicação do livro sobre o islão. “É significativo que o Alcorão fale sempre de modo positivo sobre Jesus. Há muitos textos [no Alcorão] que elogiam Jesus. A única condição é que não faz dele Deus. Há muitas possibilidades de discutir isto positivamente.”
A abertura ecuménica e inter-religiosa, que atravessava a sua teologia, levava-o mesmo a dizer: “Se eu tivesse nascido em Meca, provavelmente seria muçulmano. Analisei cuidadosamente as diferentes religiões nestes meus livros para ver quais são os aspectos positivos de cada religião. Tal como dizia o Concílio Vaticano II, posso hoje estar consciente de que as outras religiões são caminhos para a salvação e não para ir para o inferno.”
Regressando ao cristianismo e à(s) Igreja(s). No seu livro da trilogia, Hans Küng propõe não a abolição do papado, mas a sua reforma e sugere que as exigências de Francisco de Assis são uma representação de “um vigoroso questionamento do sistema romano centralizado”, válido ainda hoje.
Sendo o próprio livro – como outras obras suas – um percurso por muitos questionamentos, pela liberdade e contra a ignorância ou os dogmatismos, o teólogo interroga, a dado passo: “Como se explica que nem os imperadores pagãos, nem os ‘ditadores cristãos’, nem os papas ávidos de poder, nem os inquisidores sinistros, nem os bispos mundanos, nem os teólogos fanáticos hajam logrado extinguir” o espírito do cristianismo?
A resposta encontra(va)-a Küng em Jesus, que ele via como um judeu que se manifesta contra a violência, o legalismo e o ascetismo, e que não se afirma como condutor do povo como Moisés, como mestre moral à semelhança de Confúcio, como chefe de exército na esteira de Maomé ou como protótipo do iluminado como o foi Buda.
Antes: “Nada mais se nos depara a não ser uma pessoa. Em tal pessoa e só nela, dispomos do centro permanente e sólido do cristianismo; (…) O nome de Jesus, reconhecido ao longo dos séculos como o profeta e o enviado de Deus (…) ele é o tema original que nunca se perdeu completamente na tradição, na liturgia, na teologia e na piedade cristãs, mesmo nos piores momentos de decadência.”
E à pergunta sobre porque não se extinguiu o espírito, respondia directamente: “O que é extraordinário é que o espírito do Nazareno conseguiu sempre romper, apesar das falhas das pessoas, das instituições e das constituições, desde que os fiéis já não se contentavam com palavras e se punham a segui-lo de uma maneira muito prática. A verdade do cristianismo não é apenas verdade para conhecer, mas verdade que faz viver.”
Foi nesse seguimento e nessa verdade que viveu Hans Küng.
António Marujo*
*António Mrujo é jornalista e Diretor do jornal digital 7MARGENS parceiro de ITINERÁRIOS onde este texto foi igualmente publicado