O ecumenismo numa perspetiva católica romana

A Igreja Católica Romana combateu consistentemente (e coerentemente) o movimento ecuménico desde o início, defendendo o “primado de Pedro” com documentos como as Encíclicas Ubi Arcano Dei (1922), Ecclesiam Dei (1923), Mortalium Animos (1928), mais tarde Mystici Corporis Christi (1943). Em Junho de 1948, outro documento, um Monitum disciplinar, impediu qualquer católico desejoso (e havia muitos) de participar na assembleia fundadora do Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdão.

A doutrina básica de Roma, nesta matéria, é a de que “é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos, porquanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.” (inMortalium Animos)

Uma leitura atenta do ponto 16 desta Encíclica (de que são citadas as palavras acima) revela que se trata de uma refutação explícita do Apelo da Conferência Anglicana de Lambeth de 1920. Enquanto este parte da atitude de “todos os que deploram as divisões dos Cristãos, e são inspirados pela visão e esperança de uma unidade visível de toda a Igreja”, chamando “Igreja Católica” a esta united fellowship, que “não é hoje visível no mundo”, a Encíclica diz que a “única Verdadeira Igreja de Cristo é a todos manifesta” (visible to all, na versão inglesa) e, na sua qualidade de “mística Esposa de Cristo, jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada.” Acrescenta ainda que “seria inépcia e estultície afirmar alguém que ele [o Corpo Místico de Cristo] pode constar de membros desunidos e separados: pois quem não estiver unido com ele, não é membro seu, nem está unido à cabeça, Cristo.”

Só em 1968, no novo clima gerado pelo Concílio Vaticano II, a Igreja Católica Romana passou a estar presente, com doze dos seus teólogos, na Comissão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. Mas nunca aceitou, até hoje, integrar-se no C.M.I. como mais uma das suas Igrejas-membros, porque, de facto, a sua doutrina sobre si mesma não foi alterada.

O famoso Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio, promulgado já por PauloVI) mantém aquela identificação essencial entre a Igreja Católica Romana e a Una Sancta dos antigos Credos e, consequentemente, a necessidade de um “retorno”. Como se afirma no seu ponto 3: “Contudo, os irmãos separados, quer as suas Comunidades e Igrejas, não gozam daquela unidade que Jesus quis prodigalizar a todos os que regenerou e convivificou num só corpo e numa vida nova e que a Sagrada Escritura e a venerável Tradição da Igreja professam. Porque só pela Igreja Católica de Cristo, que é o meio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios salutares. Cremos também que o Senhor confiou todos os bens da nova Aliança ao único colégio apostólico, a cuja testa está Pedro, com o fim de constituir na terra um só corpo de Cristo. É necessário que a ele se incorporem plenamente todos os que de alguma forma pertencem ao Povo de Deus.”

Na Encíclica Ut Unum Sint, João Paulo II reconhece, de passagem, que “o movimento ecuménico teve início precisamente no âmbito das Igrejas e Comunidades saídas da Reforma”. Não fica clara, neste texto – como já não ficara no Unitatis Redintegratio – a distinção de título entre essas “Igrejas e Comunidades saídas da Reforma”. Alguém, mais tarde, chamou a si a tarefa de fazer esse discernimento. Tal como o fez, também, quanto a outra designação que João Paulo II acarinha em relação às Igrejas Orientais – a de lhes chamar “Igrejas irmãs”.

Antes de verificar estes pormenores, importa notar que João Paulo II reafirma de modo claro que, “entre todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, a Igreja Católica está consciente de ter conservado o ministério do Sucessor do Apóstolo Pedro, o Bispo de Roma, que Deus constituiu como ‘perpétuo e visível fundamento da unidade’, e que o Espírito ampara para que torne participantes deste bem essencial todos os outros.” A única novidade é a proposta, já no final da Encíclica, de uma reflexão “ecuménica” para “encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova.”

João Paulo II insere neste ponto parte de uma mensagem por si dirigida ao Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Dimitrios I, onde propõe: “O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos os pastores e teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros.” Esta mesma frase foi também por si usada no início de 2000, no Cairo, numa cerimónia em que estavam presentes o Papa Shenuda III, da Igreja Copta, e outros hierarcas das Igrejas Orientais.

(…) O discurso do Papa Bento XVI ao plenário do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos – o organismo católico que, em parceria com a Comissão de Fé e Ordem (ou Fé e Constituição) do Conselho Mundial de Igrejas, assume a escolha do texto comum a ser usado por todos os participantes. Nesse discurso, datado de 17 de Novembro do ano anterior, Bento XVI foi muito claro. Dele se podem extrair os seguintes pressupostos doutrinais explícitos:

1 – O Papa envolve-se na causa do ecumenismo na qualidade de “sucessor de Pedro”.

2 – O ecumenismo a que se refere, e que promove, começou no Concílio Vaticano II.

3 – Não há qualquer referência ao Conselho Mundial de Igrejas.

4 – Fica em contraste o “silêncio” dos observadores das “outras Igrejas e Comunidades eclesiais”, no Vaticano II, com a realidade actual “de uma Igreja em diálogo com todas as Igrejas e Comunidades eclesiais do Oriente e do Ocidente.” Nenhuma referência ao movimento ecuménico histórico.

5 – Os documentos orientadores citados são o Decreto Unitatis Redintegratio (1964), do Concílio Vaticano II, e a Encíclica Ut Unum Sint (1995), do Papa João Paulo II. Não há qualquer referência à Charta Oecumenica (2001) assinada pelos então Presidentes da Conferência das Igrejas Europeias (CEC) e do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE), o Metropolita Jeremias Caligiorgis e o Cardeal Miloslav Vlk.

6 –O único documento ecuménico citado é a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (1999), assinada entre a Igreja Católica Romana e a Federação Luterana Mundial.

7 – Distinção nítida entre a esperança declarada no diálogo com as “veneradas Igrejas do Oriente” e os problemas encontrados nos diálogos bilaterais com as “Comunidades eclesiais do Ocidente”.

8 –Apelos finais ao “ecumenismo do amor” e ao “ecumenismo espiritual”, mas com reservas: “Sem dúvida, não é o relativismo ou o fácil e falso irenismo que resolve a investigação ecuménica. Pelo contrário, eles deturpam-na e desorientam-na.”

Na audiência geral de quarta-feira 24, dedicada à Semana de Oração pela Unidade [2007] Bento XVI faz um balanço do caminho ecuménico percorrido ao longo do ano de 2006, voltando a sublinhar que este se integra no “caminho dos últimos quarenta anos”, na “experiência destas décadas, depois do Concílio Vaticano II”. Esclarece ainda, no 4.º parágrafo, que está a falar dos “encontros e os acontecimentos que marcam constantemente o ritmo do meu ministério, o ministério do Bispo de Roma, pastor da Igreja universal.” É neste contexto que descreve a visita das delegações de várias Igrejas a Roma, e os seus próprios encontros com o Patriarca de Constantinopla e com o Arcebispo de Atenas e de toda a Grécia. É brevemente citada a Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas que se reuniu em Porto Alegre (Brasil); “nessa ocasião enviei uma mensagem particular.”

Em três despachos da Ag. Zenit, do dia anterior (23 Jan. 07), é o Cardeal Walter Kasper quem, na sua qualidade de presidente do Conselho Pontifício para a Promoção Da Unidade dos Cristãos, estabelece, em conferência de Imprensa, os termos do diálogo ecuménico tal como é entendido pelo lado de Roma. Já o fizera, no dia 17, à SirEuropa. Com as Igrejas Ortodoxas há uma grande proximidade em termos de eclesiologia e dos Sacramentos; ainda subsistem diferenças no entendimento do “ministério Petrino” do Papa, mas estão a ser debatidas a nível da Comissão Mista Internacional e admite-se que seja possível “chegar à unidade perfeita.” Em relação à Comunhão Anglicana há uma posição de expectativa. (…) De modo geral, quanto a todas as “Comunidades eclesiais surgidas da Reforma”, lamenta-se que tenham aparecido dificuldades novas, como “a admissão das mulheres ao sacerdócio, a postura sobre o homossexualismo e outros temas éticos”, ou “desentendimentos sobre temas como a homossexualidade, o divórcio ou a eutanásia”. Interrogado sobre a questão de um diálogo ecuménico a “duas velocidades” (o rápido com Ortodoxos e o lento com Protestantes e Reformados), Walter Kasper responde: “Nós dialogamos e depois vemos o resultado. E nós não podemos decidir a velocidade. É o diálogo que a decide.”

A verdade é que a expressão original é sua (…). No seu discurso de abertura ao plenário do Conselho a que preside, intitulado “Situação presente e futura do Movimento Ecuménico” (emNov.2001), o Cardeal Walter Kasper, depois de enumerar as várias divergências internas e tensões, dentro do Conselho Mundial de Igrejas, como nas Igrejas Ortodoxas entre si e dentro das grandes famílias confessionais Anglicana, Luterana e outras, declara: “Estes são apenas alguns exemplos, mas exemplos que levantam a questão de saber se teremos no futuro um ecumenismo a duas, ou mesmo a várias velocidades. Isto parece provável, mas não é sem perigos e sem novos problemas. Devemos evitar a impressão de ‘dividir para reinar’. Seria mau ecumenismo criar novas divisões dentro das outras Igrejas ou famílias confessionais, ou apontar para uma nova forma de ‘uniatismo’. Sendo assim, um ecumenismo a duas velocidades é uma coisa muito delicada, que tem de ser tratada com grande discrição. Mas, na presente situação, não há uma alternativa realista. A aplicação deste conceito pede uma responsabilidade ecuménica equilibrada entre a Igreja universal e as Igrejas locais, que devem assumir as suas responsabilidades, e não podem esperar tudo do centro. O nosso Plenário devia produzir um encorajamento nesta direcção.”

No discurso de abertura da sessão plenária seguinte, em 2003, Walter Kasper reafirma claramente que o ecumenismo de que trata é o católico romano: “Nestes dois anos decorridos desde o último Plenário, em Novembro de 2001, o CPPUC continuou, de acordo com o seu mandato, a encorajar e a promover o ecumenismo, ‘tal como ele é entendido pela Igreja’(cf. Christus Dominus 16) na base dos princípios Católicos  formulados pelo Concílio Vaticano II no Decreto Unitatis Redintegratio e frequentemente desenvolvidos pelo Santo Padre, particularmente na Encíclica Ut Unum Sint em1995. Os princípios jurídicos deste mandato encontram-se no Código de Direito Canónico, no Código Canónico das Igrejas Orientais, na Constituição Pastor Bonus (1988) e no Directório para a Aplicação dos Pincípios e Normas sobre o Ecumenismo.”

Este texto de Silas Oliveira sobre o movimento ecuménico foi inicialmente publicado na “Revista Lusófona de Ciência das Religiões” (2012), como trabalho final do curso de formação avançada sobre Jornalismo e Religiões, promovido pela Universidade Católica Portuguesa e o CENJOR em 2006/2007)

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