Este texto reproduz uma crónica radiofónica de Silas Oliveira, inspirada pelo seu encontro com Ezequiel Landau, no Instituto Ecuménico de Bossey, em Genebra, Suíça.
É a primeira de uma série de crónicas que teve o privilégio de poder publicar, entre Abril de 1996 e Julho de 2003, no programa “Como se visse o invisível”, na TSF, criado e editado pelo jornalista Manuel Vilas-Boas
Ezequiel Landau é um intelectual israelita que tive a oportunidade de ouvir, há pouco tempo, no Instituto Ecuménico de Bossey (do Conselho Mundial de Igrejas), perto de Genebra. Ele é um dos fundadores e dirigentes de uma instituição chamada “Casa Aberta”, em Ramle, entre Jerusalém e Telavive, e cuja história merece ser contada.
Esta tinha sido a casa da sua mulher, Dália, de uma família de judeus vindos da Bulgária em 1948, em plena época do Êxodo da Europa central para a Palestina, logo após a II Grande Guerra. A versão oficial era a de que Ramle e outras cidades próximas, como Jafa e Lidah, tinham sido abandonadas pelos seus próprios habitantes, que fugiam diante do exército israelita vitorioso – e tanto bastava para que estes imigrantes pobres, acossados pela memória do Holocausto, as ocupassem de consciência tranquila, como sendo a “sua” Terra Prometida.
Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, o território onde se tinham recolhido estes palestinianos derrotados ficou ocupado por Israel, e aconteceu o inevitável: um dia, movidos pela saudade, ou por curiosidade, os seus antigos donos vieram ver a casa de Dália. Um deles, o mais velho, pediu especialmente para ser levado ao quintal e deixarem-no sentar-se outra vez à sombra do limoeiro, do “seu” limoeiro, para apalpar a casca, voltar a sentir o cheiro que lhe fora familiar por tantos anos.
O choque foi tão grande, e o diálogo tão doloroso, que ambos os lados chegaram à conclusão de que aquela já não podia ser a casa exclusiva de nenhum deles. Deste modo nasceu a “Casa Aberta”, que funciona como ponto de encontro e de reconciliação entre judeus e palestinianos, com a preocupação expressa de misturar e fazer conviver as crianças desde os primeiros anos – como dizia Ezequiel Landau, “antes que seja tarde.”
Podíamos perguntar, neste ponto, a quem pertencem, finalmente, as casas incendiadas de Sarajevo, destruídas exactamente antes de serem devolvidas; ou as de Grozny, ou as da Libéria, do Ruanda, do Burundi. Ou podíamos, aqui à nossa porta, interrogar-nos sobre quem condenamos ao exílio das cidades onde queremos habitar – começando, talvez, pelos operários caboverdeanos que as ajudaram a construir.
Mas Ezequiel Landau contou uma outra história, mais inquietante. Ele tinha sido convidado, na véspera, por um dos canais de televisão de Genebra, e a entrevista até tinha corrido muito bem, mas no fim, já com o microfone desligado, a jornalista que tinha feito o trabalho desabafou o seu pessimismo quanto ao projecto da “Casa Aberta” de Ramle e declarou candidamente que aquilo em que ela acreditava, de facto, era na iminência da grande batalha do Juízo Final, a batalha de Armagedon, destinada precisamente – como dizia, surpreendido e amargurado, o conferencista – a devastar “o meu país”.
Formado em teologia e em psicologia, e com prática de ensino do judaísmo em instituições ecuménicas, Ezequiel Landau deixou-nos, aos cristãos que lá estávamos naquela noite, uma pergunta embaraçosa: “Como é que um Evangelho de amor consegue coexistir com uma visão apocalíptica em que milhões e milhões de pessoas vão ter de morrer, para que a vitória desse Deus seja finalmente reconhecida pelos sobreviventes?”
Também a Bíblia é uma casa, de onde muitas vezes temos pressa em expulsar – com uma autoridade que não nos foi atribuída – os “gentios” dos povos que consideramos “não eleitos”. E não faltam hoje os que querem servir-se, desta e de outras Escrituras respeitáveis, como de casas fechadas, condomínio reservado, propriedade privada. É mais correcto lembrar que a Bíblia não foi dada à Igreja – a nenhuma Igreja – foram antes as Igrejas que cresceram no seu espaço, como crianças numa casa aberta.
Silas Oliveira