Um teólogo na encruzilhada da fé, da cultura e do pluralismo religioso

Joel Pinto¦13 de Agosto de 2021

O pastor e professor Dimas Almeida, que incarnou de maneira insigne o cristianismo reformado português, faleceu em 11 de Agosto com a idade de 84 anos, deixando-nos como herança um itinerário intelectual e espiritual de uma rara coerência e exigência. Foi colaborador de “Itinerários”

Estamos hoje privados de uma personalidade marcante, cuja brilho excede largamente as dimensões da subcultura protestante portuguesa. Mas, curiosamente, é possível que a maioria dos protestantes nunca tenha ouvido falar do pastor Dimas, nome pelo qual era conhecido António José Dimas Almeida, pastor da Igreja Presbiteriana de Portugal! Além do silêncio ou do desinteresse que rodeava a sua pessoa nos meios evangélicos, as suas aparições em debates televisivos como representante da tradição protestante reformada ou presbiteriana, não contribuíram para que se tornasse conhecido do povo protestante como seria lógico esperar. É que o “tempo televisivo”, demasiado rápido e necessariamente superficial, não convinha a Dimas Almeida que era um homem de reflexão intensa e exigente.

Como colega e amigo íntimo, fui testemunha e cúmplice da sua busca de uma fé comprometida com a realidade e livre de se exprimir na diversidade das linguagens da ultramodernidade. A sua reflexão crítica e dialogante, assumindo simultaneamente a diversidade do cristianismo e o pluralismo da sociedade contemporânea, faz dele uma espécie de outsider tentando ultrapassar as “contingências a que estão submetidas as minorias religiosas em sociedades, como a portuguesa, tendencialmente mono-religiosas”, contingências particularmente bem analisadas por José Brissos-Lino numa perspetiva mais sociológica. Embora Dimas Almeida seja uma das vozes mais relevantes da minoria protestante, é, no entanto, compreensível que tenha permanecido marginal num contexto em que as comunidades eclesiais estão mais preocupadas com a sua sobrevivência do que com o diálogo com a sociedade e a cultura. Mas se a sua voz não foi suficientemente audível entre os protestantes portugueses ela foi reconhecida, apesar de tudo, pelos meios católicos romanos mais sensíveis à sua abertura teológica e espiritual e à sua brilhante inteligência.

Dimas Almeida estava convencido de que a teologia não consistia unicamente em sistematizar, definir, expor e explicar a Revelação. A teologia deveria ser igualmente uma instância crítica e interpretativa da realidade e, como tal, parceira das ciências humanas. Lembro-me de ele me ter dito, depois de ter sido convidado para lecionar na Universidade Lusófona um curso sobre o pensamento contemporâneo, que tanto a sua preparação como a reação entusiasta dos seus alunos ao descobrirem a dimensão crítica do pensamento teológico o encheram de satisfação.

Dimas Almeida era igualmente um malabarista da narração e um malabarista das palavras. Brincava com elas, adorava repeti-las para sublinhar o seu significado. Martelava-as a fim de lhes extrair a substância e descobrir ideias conectadas. Saboreava-as com deleite. Ironizava. Quando, enfim, nos rendíamos à evidencia os seus olhos brilhavam de satisfação e de inteligência. Foi, fundamentalmente, um mediador e um professor.

O seu terreno de predileção não era a vida eclesial institucional, da qual se sentia alheio, mas sim a sociedade secularizada em busca de sentido, prenhe de contradições e cuja complexidade o fascinava.  A sua vocação pastoral e teológica situava-se na encruzilhada da fé e da cultura. A sua fé era uma fé inteligente, dialogante, respeitadora das diversas racionalidades e espiritualidades. Isto pode parecer trivial, mas não pode deixar de ser sublinhado num mundo onde se entre chocam os mais diversos fanatismos e sectarismos.   

Como teólogo, Dimas Almeida não criou um sistema original, mas singularizou-se pela sua capacidade em apreender os grandes temas da teologia e das ciências humanas de maneira sistémica, abordando-os com competência e erudição. O seu pensamento caracteriza-se pelo gosto da contradição e pelo distanciamento crítico através do paradoxo e da ironia. Dimas Almeida tentava dizer o indizível através desta forma de linguagem. Se quisermos qualificar a sua teologia podemos afirmar que era um adepto da teologia dialética, na linha do grande Kierkegaard e depois da teologia reformada da primeira metade do século XX, isto é, um leitor atento de Karl Barth e de Rudolph Bultmann, que influenciou significativamente a sua atividade exegética. A sua grande paixão intelectual, na linha da escola bultmaniana, era o conhecimento da cultura clássica e do mundo do Novo Testamento. Reconhecido helenista, Dimas Almeida ilustrou-se ainda como tradutor da “Ética a Nicómaco” de Aristóteles e da Pequena Filocália, o tesouro espiritual das Igrejas orientais, duas obras que o ocuparam durante vários anos e tiveram um grande impacto na sua vida espiritual.

Quanto à sua maneira de trabalhar, não posso deixar de sublinhar a exigência e até mesmo o perfeccionismo. Talvez seja essa a razão por que não escreveu nenhum livro. Mas Dimas Almeida não foi um puro intelectual. Foi igualmente um homem de oração e de ação. É disso que tenho o prazer de testemunhar.

Diga-se, no entanto, não fosse ele pastor de uma minúscula Igreja presbiteriana em Portugal, teria sido um intelectual de relevo, tanto em Portugal como na Europa, ocupando certamente uma cátedra universitária…

Joel Lourenço Pinto

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