A emergência do terrorismo islamista de Al Qaeda, no início do século XXI, e a dos regimes fundamentalistas dos Talibãs no Afeganistão e de Daesh (estado islâmico), trouxeram a violência religiosa para a vanguarda da política mundial. Hoje, o discurso dominante dos políticos e líderes religiosos é que as religiões são um fator de paz, que a violência que hoje se manifesta no Islão é puramente acidental, que os terroristas devem ser tratados como criminosos comuns e não como religiosos, etc. No entanto, esta visão “politicamente correta” do fenómeno religioso não deve impedir-nos de analisar a relação entre violência e religião, entre a violência e o sagrado, entre a violência e a Igreja. Apesar ser chocante para muitos cristãos a existência de seitas violentas e suicidas que se identificam com o cristianismo, a verdade é que algumas delas, além de proclamarem um fim do mundo apocalíptico, atuam no sentido de acelerar o colapso total da civilização.
Tentativa de compreensão
A polarização da opinião pública ocidental sobre a violência islâmica parece-me obscurecer o facto de que existe uma relação estrutural entre a violência e religião. As belas e boas obras produzidas pelas religiões, seja no campo da ética, da arte ou da cultura em geral, não devem impedir-nos de enfrentar a violência ligada às religiões – a todas as religiões! Embora o discurso secularista queira preservar o espaço público dos excessos religiosos potencialmente violentos, apelando a uma separação rigorosa entre Igreja e Estado laico, tal como à ocultação da manifestação pública das crenças e dos símbolos religiosos para preservar a sociedade de conflitos religiosos, a verdade é que é impossível impedir tanto a exaltação religiosa pública como a exaltação dos sentimentos amorosos e dos sentimentos patrióticos, por exemplo! Recorrer à separação rígida entre as esferas individual e pública, para tentar domar os excessos do sentimento religioso é uma postura dificilmente sustentável. Com efeito, como demarcar claramente a fronteira entre uma e outra? Quem é que decide o que é de pertinência pública e o que é de relevância privada? O que é uma religião sem rituais públicos e sem símbolos visíveis?
Afiançar que a pureza do estado laico preserva a sociedade dos excessos das crenças, focalizando-se nas religiões, é uma forma de esquivar um problema de que o século XX nos deu copiosos exemplos. As derivas violentas do nacionalismo e do comunismo, que não estão a priori relacionados com uma religião, no sentido tradicional, têm apesar de tudo uma dimensão religiosa. As ideologias fascista e estalinista, extremamente violentas, não serão de facto formas excessivas de uma religiosidade nacionalista? E que dizer da “devoção” dos adeptos de Donald Trump pelo seu líder e pela América branca e protestante? Estes sentimentos são religiosos, se entendermos por “religioso” o conjunto de crenças, a visão do mundo, que cria a unidade de um grupo, muitas vezes ritualizado pelo próprio secularismo.
Será a violência inerente à natureza humana, contaminando posteriormente a comunidade? Ou será que ela é de natureza social, inerente às imperfeições da sociedade, infetando os indivíduos? No primeiro caso, diríamos que é a nossa estrutura biológica que nos torna capazes de violência. No segundo caso, postula-se que o ser humano é naturalmente bom e que se torna violento quando é contaminado pela sociedade disfuncional. Estas duas visões, pessimista e otimista, coexistem hoje em dia e é interessante notar que a lei, que se preocupa principalmente em encontrar a culpa ou inocência dos arguidos, ao designar um culpado, tem em conta estas duas abordagens. São os conhecidos fatores atenuantes, tais como doenças psicológicas ou o ambiente familiar ou social disfuncional, por exemplo. Em qualquer dos casos, se é correto afirmar que as exaltações excessivas são tendencialmente violentas, convém igualmente admitir que os sentimentos religiosos fortes, ardentes e agitados, coabitam com a Religião.
Acabo de esboçar, de forma bastante sumária, algumas das respostas dadas à questão da origem da violência. O meu objetivo é simplesmente realçar a dura realidade da violência, que afeta todos os aspetos da vida social, incluindo as religiões e, claro está, a própria Igreja Cristã. Admitir isto é evitar a armadilha fatal que consiste em idealizar a Igreja e, consequentemente, ocultar as crises e as suas resoluções violentas, quaisquer que sejam as suas formas.
A hipótese da origem religiosa da violência
René Girard, o filósofo e antropólogo franco-americano falecido em 2015, surpreendeu os círculos académicos e religiosos ao afirmar o papel determinante da violência nas origens da cultura e da religião. O trabalho de Girard é muito importante e fascinante, porque nos oferece um modelo de compreensão que tem implicações incalculáveis para as ciências humanas e para a teologia. Eis, num breve resumo, o que René Girard encontrou no decurso das suas investigações.
Analisando as obras de Stendhal, Flaubert, Proust e, em seguida, de Cervantes, Shakespeare e Dostoievski (Mensonge romantique et vérité romanesque, Paris, Grasset, 1961) [1], como mero historiador da literatura, a sua profissão inicial, Girard descobriu que o traço comum de todas as grandes obras literárias de dimensão universal é uma intriga onde o mimetismo humano, ou seja, a imitação do desejo do rival, ocupa um lugar capital na evolução das personagens e na manifestação das suas pulsões violentas que terminam frequentemente em tragédia. As obras-primas literárias são variações sobre este tema central.
Esta compreensão do mimetismo intrínseco à natureza humana, que já tinha sido assinalada pelos filósofos da Antiguidade e, mais perto de nós, por Espinoza, embora noutro contexto, permitiu-lhe elaborar a chamada “Teoria Mimética” que descreve a maneira como circulam os desejos dos diferentes sujeitos rivais. Esta teoria pode ser representada de forma triangular: o sujeito A deseja o objeto C, porque este objeto C é desejado pelo sujeito B, cujo desejo A imita, e vice-versa! Esta triangularidade complexifica-se à medida em que os sujeitos são numerosos e que os objetos desejados o são igualmente. É esta a sua primeira grelha de compreensão: contrariamente à mentira romântica que escamoteia o mimetismo do desejo ao imaginar que as coisas são desejáveis devido às suas qualidades intrínsecas, a verdade romanesca revela-nos que desejamos, simplesmente, o que é desejado pelos nossos competidores reais ou supostos! É a impossibilidade de satisfazer os desejos de todos os sujeitos que faz com que estes se envolvam em conflitos que, mais cedo ou mais tarde, se tornam violentos.
Continuando a sua pesquisa, Girard vai interessar-se pela mitologia e pelos livros sagrados das antigas religiões, em particular, a mitologia grega, os Veda, assim como a Bíblia hebraica e cristã. Num livro que assinala uma autêntica conversão intelectual e espiritual (cf. La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1972) [2], Girard demonstra que os alicerces do edifício cultural e social que constitui a nossa Civilização são sacrificiais. Toda a tradição mitológica e religiosa revela a importância decisiva do sacrifício de uma pessoa ou de um grupo, considerado unanimemente culpado pelas violências e pelas calamidades que ameaçavam a sobrevivência da comunidade. A reconciliação dos adversários e o apaziguamento dos elementos naturais, obtidos graças à designação dos responsáveis e ao seu sacrifício, evita a guerra de todos contra todos e a extinção da comunidade. Para Girard, é esse o fundamento da Civilização.
A sua tese, amplamente explanada em numerosos ensaios e artigos científicos, é a de que a recordação ritualizada de um sacrifício inicial está na origem das religiões. As vítimas sacrificadas, consideradas culpadas e depois inocentadas e dotadas de poderes divinos graças ao valor salvífico do seu sacrifício estão na origem dos mitos fundadores das grandes tradições religiosas. Através da vitimização simbólica de um ser humano ou de um animal, transmitindo o mito fundador, as religiões asseguraram, por conseguinte, ao longo da História, a sobrevivência do grupo e uma relação apaziguada com um deus ou deuses. Para Girard, a temática do sacrifício da vítima de substituição ou do “bode expiatório” é universal. Convencidos de que as crises violentas não são o resultado do acaso nem da sua responsabilidade, os rivais estão sempre à procura de um culpado, que só precisam de remover ou de condenar à morte, a fim de restaurar a paz na comunidade. Isto é feito sem que suspeitem que o designado desordeiro possa estar inocente daquilo de que é acusado. Neste contexto, compreende-se melhor por que razão o Sumo Sacerdote Caifás afirma a necessidade de prender e condenar Jesus “convém que um homem morra pelo povo e não toda a nação” (João 11:50) e que o evangelista Lucas comente, depois da condenação à morte de Jesus, que Herodes e Pilatos, anteriormente inimigos, se tenham reconciliado.
De facto, desde as suas origens, a humanidade sabe que as explosões de violência, se não encontrarem uma saída ou um final feliz, conduzem gradualmente a uma crise de todos contra todos, ao paroxismo da violência generalizada, capaz de ameaçar a sua própria existência. O problema é que, estando inclinados a desejar o que os outros desejam, as nossas crises miméticas conduzem-nos a uma espiral interminável que termina inevitavelmente em vingança assassina. Este mecanismo, que transforma o perigoso “todos contra todos” no necessariamente apaziguador “todos contra um”, está na origem da civilização. Para as sociedades arcaicas, existe uma violência “maligna”, a do culpado que ameaça a existência de toda a comunidade, e uma violência “benéfica” que lhe permite encontrar a paz, mobilizando-se contra o culpado. Este mecanismo é chamado por René Girard o “mecanismo do bode expiatório” no sentido mais comum, ou seja, a hostilidade coletiva para com uma pessoa ou um grupo de pessoas julgadas responsáveis pelos males, como as guerras, doenças, fome e diversos cataclismos que assolam a comunidade. Como o linchamento do elemento perturbador traz um verdadeiro alívio, acredita-se que houve um milagre: o grupo reconstrói-se através de um assassinato levado a cabo por todos os seus membros, convencidos de que a vítima designada é, de facto, culpada e merece ser executada. Paradoxalmente, o grupo sente-se grato àquele que lhes permitiu reaver a paz e faz dele um herói ou um deus. Para Girard, a história desta crise, com a designação do bode expiatório e a sua deificação após o seu sacrifício, chama-se um mito.
Este investigador encontrou tais histórias ou mitos em quase todas as culturas. O que prova que a origem da nossa cultura é sacrificial e religiosa, e que foi o mecanismo do bode expiatório que tornou possível a gestão da violência interna dos grupos sociais. Com a celebração da unidade do grupo e a narração de histórias fundadoras, nasceram também ritos que permitiram que a comunidade reproduzisse a crise e o seu resultado salvífico, sacrificando regularmente novas vítimas humanas ou animais. Segundo Girard, esta é a origem da nossa cultura: a humanidade, tem sido confrontada desde as suas origens com a ambiguidade da violência, que tanto a pode destruir como a pode salvar, uma vez ritualizada a expulsão da violência pela violência! Esta descoberta é bastante chocante porque contraria a essência do pensamento moderno e secularista, por vezes antirreligioso, que tem dificuldade em aceitar que a humanidade se tenha construído socialmente desta forma e que a religião seja, finalmente, um factor de progresso. Girard nota que não é mais fácil aceitar que a violência religiosa esteja na origem da nossa civilização do que aceitar que somos descendentes distantes de macacos! Contudo, ele acredita que na fase em que as sociedades arcaicas se encontravam a violência sacrificial exercida sobre as vítimas não era uma questão moral mas sim um passo necessário na aprendizagem da vida coletiva.
Este mecanismo foi tão eficaz que já dura há milénios e é ainda atual, em determinadas circunstâncias. Basta pensar nos acontecimentos que marcaram a história da Europa, como as guerras de religião, a perseguição dos judeus, os genocídios, as revoluções e o racismo. Mas recordemos, evidentemente, o mundo do desporto onde a multidão injuria ou agride um árbitro ou um treinador quando a sua equipa tem um comportamento medíocre no terreno. Pense-se no mundo da competição e da ambição frenética que caracteriza não só a vida económica e financeira, mas também a investigação científica e intelectual. Pense-se igualmente na focalização dos círculos nacionalistas sobre os trabalhadores migrantes e os requerentes de asilo: embora saibam perfeitamente que essas populações se deslocam porque são vítimas de injustiças sociais, económicas e políticas nos seus países de origem, os xenófobos projetam nessas pessoas as suas próprias insatisfações sociais criminalizando os estrangeiros como justificação das medidas de exclusão que eles nunca aplicariam a si mesmos num Estado de direito. A temática do “todos contra um” funciona muito bem na nossa sociedade.
No que diz respeito às Igrejas, a situação não é realmente muito diferente [3]. A unidade da Igreja está a ser minada? É por culpa dos protestantes. O ecumenismo não avança? É culpa dos católicos ou mais precisamente da Cúria Romana. A sociedade está a perder o seu rumo e a afundar-se no relativismo? É culpa dos teólogos cujo espírito crítico sapou a fé dos fiéis e lhes dificulta distinguir o verdadeiro do falso. As Igrejas estão a esvaziar-se? É culpa de todos aqueles, pastores e padres, que não se ocupam suficientemente dos seus paroquianos ou que desconhecem as regras da comunicação moderna. A Igreja carece de eficiência e de dinheiro? É porque não consegue restruturar-se e otimizar os seus recursos devido aos que se interrogam sobre a pertinência dos métodos utilizados ou resistem às mudanças. Estamos insatisfeitos porque as nossas Igrejas são incapazes de formular uma visão mobilizadora? A culpa é do Bispo ou das comissões executivas. E assim por diante…
É muito claro: fabricamos continuamente bodes expiatórios na esperança de sair das nossas crises! Concentramo-nos nos outros e tentamos convencer-nos de que eles são culpados daquilo que corre mal. É esta a nossa reação mais espontânea. Mas a realidade, diz-nos Girard, é que não temos a certeza disso, estando cada vez menos seguros da eficácia do mecanismo vitimário. Porquê? Porque há dois mil atrás alguém revelou a perversidade e a ineficácia do mecanismo do bode expiatório como saída para a violência. Alguém disse que a solução para que os rivais possam viver juntos, evitando a confrontação violenta, é o reconhecimento de que o mal não vem do exterior, mas sim do interior deles mesmos. Só esta “conversão” permite elaborar um contrato que torne possível o viver juntos. Esse “alguém” foi Jesus de Nazaré.
Todo o trabalho de René Girard nos últimos trinta anos consistiu em mostrar a maneira como os textos bíblicos, particularmente os evangelhos, desconstroem o mecanismo do bode expiatório e nos obrigam a olhar para nós mesmos e a assumir as nossas responsabilidades. A tradição bíblica é o grão de areia que impede o mecanismo do bode expiatório de funcionar corretamente, como assinalou Girard em dois livros notáveis: Les choses cachées depuis la fondation du monde, Grasset, Paris, 1978 [4] e J’ai vu Satan tomber du ciel comme un éclair, Grasset, Paris, 1999[5]. O historiador da literatura tornou-se antropólogo e, sem mesmo se dar conta disso, teólogo, como ele próprio declara.
A superação da violência sacrificial
Contrariamente aos mitos, onde a vítima é sempre culpada, os textos bíblicos, sobretudo do Novo Testamento, declaram que a vítima é inocente. Esta constatação, aparentemente de uma grande simplicidade (basta ler os textos…), é provavelmente aquilo que é mais difícil de aceitar na tese de René Girard pois, contradizendo o relativismo ambiente, o antropólogo afirma sem pudor que o judeu-cristianismo contém uma dimensão de “verdade” inexistente nas outras religiões. Entendamo-nos: ao desconstruir o mecanismo do bode expiatório e a sua inocência a Bíblia diz “a verdade” enquanto as religiões mentem, através do mito, ao afirmar a sua culpabilidade…
Ao ritualizar o assassinato do bode expiatório, as comunidades arcaicas puderam ser salvas da sua violência. Mas este mecanismo, para ser eficaz, pressupõe a ignorância do mesmo. Ora, o impacto da mensagem bíblica judaico-cristã na cultura, a própria existência de uma civilização de inspiração judaico-cristã, revela o mecanismo da vitimização. René Girard, na sua análise dos textos bíblicos, conclui que estes textos revelaram este mecanismo muito cedo, acrescentando um elemento que o impede de funcionar: a convicção de que Deus é o defensor das vítimas substitutas inocentes. Assim, o mundo ocidental judaico-cristão difere de todas as culturas que o precederam porque “conhece” o mecanismo que produz os bodes expiatórios, de modo que as rivalidades miméticas já não podem ser convenientemente apaziguadas pela designação de uma vítima que é necessariamente culpada, mesmo que finja ignorá-la! Os contactos entre outras civilizações e a versão secular da judaico-cristã, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, revolucionaram o mundo ao revelarem a inocência dos bodes expiatórios. É por isso que a religião está em crise. É por isso que o mundo moderno está em crise. Mesmo que se tente recriar o mecanismo, sabe-se que, nestas crises, já não podemos ser protegidos pelo fabrico de bodes expiatórios. Existe, à escala planetária, uma preocupação para com as vítimas que impede o mecanismo de funcionar corretamente. Para Girard, a humanidade chegou, durante o século XX, a um ponto sem retorno: ou se afunda numa violência generalizada e caótica, ou se torna judaico-cristã no sentido de integrar definitivamente a não-violência evangélica, o princípio da responsabilidade ética e o princípio da reconciliação.
A visão girardiana do avanço acelerado do mundo atual para o abismo é assustadora e intransigente. Como nos lembra o autor num dos seus últimos livros (Achever Clausewitz, Paris, Carnets Nord, 2007), a eventualidade do fim da Europa e do mundo ocidental é não só possível como se tornou real pois, a violência desencadeada a nível planetário provoca aquilo que os textos bíblicos apocalípticos anunciavam, quer dizer, a confusão entre os desastres causados pela natureza e os desastres causados pela humanidade, a confusão entre o que é natural e o que é artificial. O apocalipse deixou de ser meramente metafórico: a violência outrora produzida pelo Sagrado deixou de nos proteger e a violência atual só produz cada vez mais violência! Mas, numa reflexão cheia de esperança, inspirada da visão apocalíptica do Novo Testamento que nos revela um desfecho feliz para a história da humanidade, Girard diz-nos que o incrível paradoxo é que o desencadeamento da violência permite simultaneamente o desencadeamento da santidade pois, onde o mal abunda a Graça superabunda (Epistola aos Romanos 5:20), ou, como diz o poeta romântico alemão, Höderlin, onde cresce o perigo cresce também o que salva. Embora tenhamos de admitir que somos capazes de fazer a escolha errada, contrariamente ao otimismo humanista que a recusa, René Girard conclui que um final feliz para a presente crise civilizacional é igualmente possível. Em ambos os casos estamos “em vésperas da vinda de Cristo”, no sentido em que o fim programado do mecanismo do bode expiatório pode introduzir-nos num tempo em que será necessário escolher claramente entre a vida e a morte.
Seremos nós capazes de abandonar definitivamente o mecanismo da vítima expiatória para recuperar das nossas crises? Agora que conhecemos o mecanismo, a escolha só pode ser entre a não-violência e a violência. Ou reconhecemos as nossas responsabilidades e entramos num processo de reconciliação ou enveredamos pela violência absoluta com as armas atómicas e biológicas de que dispomos e através do caos terrorista que corrói a nossa civilização a partir do interior!
E quanto às Igrejas? Apesar de todas as suas infidelidades, elas nunca ignoraram o cerne da mensagem de Jesus Cristo que substitui a eficácia do mecanismo do bode expiatório pela eficácia do amor pelos inimigos e pela reconciliação. Sempre o proclamaram, embora os seus atos contradissessem frequentemente as suas palavras. Mas os compromissos, os silêncios e as deformações da mensagem, nunca foram capazes de esconder o que é revolucionário na mensagem de Jesus e que as Igrejas não podem deixar de anunciar: o mecanismo da vitimização que consiste em estigmatizar os outros para resolver as nossas crises, é uma falsificação da verdade!
Se a história do cristianismo é a crónica da dissolução progressiva dos elementos de violência natural e sagrada presentes na Igreja e no mundo, de facto, ainda não atingimos o alvo. Há um olhar evangélico, urgente, sobre a nossa forma de ser Igreja e um necessário reconhecimento das violências que acompanham a prática religiosa. Neste sentido, a identificação dos mecanismos de vitimização no seio da Igreja parece-me inevitável. As Igrejas, ameaçadas de implosão pelas mesmas razões que as outras instituições, sabem que não lhes é permitido fazer outra coisa que não seja o que Cristo lhes propõe. De outro modo, ao recusar olhar em face as pulsões violentas que nela se manifestam, resvalam para o pântano da violência institucional. Rivalidades entre pessoas, ambições de poder, são coisas inevitáveis. Mas porque as Igrejas – em princípio –não acreditam na eficácia da vitimização, elas têm de escolher entre o confronto violento e o diálogo.
Lançar luz sobre tudo isto, propor caminhos de diálogo e de reconciliação, aceitar sacrificar-se a si mesma e não o adversário, trata-se de um vasto programa para Igrejas a perder terreno, confrontadas a uma crise identitária num mundo cada vez mais secularizado. No entanto, a mensagem cristã é mais relevante e necessária do que nunca…
Concluo com uma citação do relatório do WCC sobre a Década para Superar a Violência: “A comunidade ecuménica das igrejas afirma a sua convicção de que a comunhão de todos os santos, que é um dom de Deus e tem as suas raízes na vida trina de Deus, é capaz de superar a cultura da hostilidade e da exclusão que só pode levar ao círculo vicioso da violência. Esta comunidade tornou-se uma imagem da possibilidade de viver juntos na reconciliação, reconhecendo ao mesmo tempo que as diversidades permanecem. Se esta comunidade se tornar um defensor da reconciliação de todos aqueles que são vítimas de violência em todo o lado e propuser formas não violentas de resolução de conflitos, seremos verdadeiramente testemunhas credíveis da esperança que existe dentro de nós, construindo uma cultura de paz e reconciliação para toda a criação”
Joel Lourenço Pinto
Notas:
[1] trad. em português: Mentira Romântica e Verdade Romanesca, Lisboa, UL, 2019 2009
[2] trad. português: A violência e o Sagrado, São Paulo, Paz e Terra, 1990
[3] É evidente que a questão da violência no seio das igrejas, inerente à sua natureza humana, às suas formas institucionais e influência do ambiente social, é reconhecida pela maioria dos cristãos. É, no entanto, um assunto esquecido ou encoberto. Para além de algumas vozes corajosas que sacodem regularmente as instituições eclesiásticas, o tema da violência religiosa é passado sob silêncio, provavelmente porque prejudica a crença na pureza/santidade da Igreja.
[4] trad. em português: Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo, São Paulo, Paz e Terra, 2008)
[5] trad. em português: Eu via Satanás Cair do Céu Como um Raio, Lisboa, Instituto Piaget, 2002)