O povo que andava em trevas viu uma grande luz…

Isaias 8:21 – 9:6

“E passarão pela terra duramente oprimidos e famintos; e será que, tendo fome, e enfurecendo-se, então amaldiçoarão ao seu rei e ao seu Deus, olhando para cima. E, olhando para a terra, eis que haverá angústia e escuridão, e serão entenebrecidos com ânsia e arrastados para as trevas.
Mas a terra, que foi angustiada, não será entenebrecida; envileceu nos primeiros tempos, a terra de Zebulom, e a terra de Naftali; mas nos últimos tempos a enobreceu junto ao caminho do mar, além do Jordão, na Galiléia das nações. O povo que andava em trevas, viu uma grande luz, e sobre os que habitavam na região da sombra da morte resplandeceu a luz.
Tu multiplicaste este povo, a alegria lhe aumentaste; todos se alegrarão perante ti, como se alegram na ceifa e como exultam quando se repartem os despojos. Porque tu quebraste o jugo da sua carga, e o bordão do seu ombro, e a vara do seu opressor, como no dia dos madianitas. Porque toda armadura que levava o guerreiro no tumulto da batalha, e todo o manto revolvido em sangue, serão queimados, servindo de combustível ao fogo.
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”

A primeira coisa a fazer é deixarmo-nos surpreender pelo texto bíblico, lê-lo lentamente, saboreá-lo, o que não é fácil com este trecho de Isaías, bem conhecido e que cheira a Natal!

Uma ou outra frase é-nos familiar, porque surge regularmente nas liturgias do Avento e do Natal. A sua visão grandiosa e poética e insere-se perfeitamente numa celebração litúrgica. Por outro lado, resume a fé messiânica dos cristãos que vêem em Jesus o Messias esperado pelo profeta. De facto, ele faz parte de um conjunto de textos messiânicos da autoria do profeta Isaias que viveu no oitavo século antes de Jesus.

No entanto, quando se aborda um texto antigo, é bom situá-lo: o povo que andava nas trevas e que viu uma grande luz é, primeiramente, o povo de Judá, do século VIII aC! Embora aquilo que importa, finalmente, seja a esperança messiânica que habita a visão do profeta Isaías, que tanto os judeus como os cristãos reivindicam, não é legítimo interpretar imediatamente o texto à luz do messianismo cristão sem o contextualizar.

O texto no seu contexto

Façamos uma pequena incursão histórica. Os conhecedores do mundo e da literatura bíblica sabem quem era o profeta Isaías. Nascido e educado em Jerusalém, a sua formação de escriba distinava-o certamente a exercer funções de alto funcionário na casa real. No entanto, segundo o cap. 6 :1, no ano em que morreu o rei Uzias (738 a.C.), quando Jotão subiu ao trono em Jerusalém, Isaías encontra-se no templo e vive uma experiência mística extraordinária. Em termos eruditos, trata-se de uma teofania ou manifestação divina na esfera profana que o convoca para o exercício da função profética. Assim, o profeta oficial, funcionário da corte de Jerusalém, torna-se vidente. Vai exercer esta função de maneira autónoma, acompanhado pela mulher, igualmente profeta, e pelos seus filhos. E vai fazê-lo, por vezes, em confrontação com reis que, do seu ponto de vista, não incarnam de maneira autêntica a vocação da dinastia davídica, pois, como se sabe, Davi inaugurou uma dinastia cuja função era preservar não somente a existência e a independência da nação, mas igualmente a sua fé tradicional, sendo visto como um profeta, um sacerdote e um rei. Como é óbvio, nem todos os seus descendentes estiveram à altura do seu ilustre antepassado.

Que vê Isaías? As suas visões não são visões do além, à maneira dos chamans que pretendem ver o oculto. As suas visões chamar-se-iam hoje “visões prospectivas”. Trata-se de visões de um futuro transformado em relação à situação presente. É isso que é específico na profecia bíblica que inaugura um género literário hoje bastante apreciado e útil: a prospectiva. A diferença é que enquanto a prospectiva actual se baseia numa interpretação do futuro a partir dos sinais que se apresentam na atualidade, os oráculos proféticos são comandados ou determinados pela visão do futuro que nos espera. Finalmente, os profetas utilisam a prospectiva de maneira inversa. É o futuro que determina o presente e não o presente que determina o futuro!

Nas visões proféticas dos capítulos 6:1 a 9:6, uma secção literária conhecida como o « Livro do Emanuel », Isaías dirá, através de fórmulas, alusões, símbolos, como se apresenta o futuro. A partir da visão no templo, ele visionará a subida ao trono de Davi de um personagem enigmática, um menino que não é chamado rei mas que assume funções reais, a fim de construir justiça e prosperidade. A certeza de que isso acontecerá levá-lo-á a interpretar o presente de maneira positiva e otimista.

Esta secção do livro de Isaias tem como pano de fundo os acontecimentos que, no espaço de 11 anos, puzeram termo ao reino de Israel em 722. Durante este período bastante confuso e agitado da história hebraica, Samaria, capital do reino do Norte foi destruída por Senaquerib e tanto o Norte como o Sul correm o risco de serem arruinados pelo invasor. Finalmente, subsiste Judá no Sul, cujos reis não estão à altura das circunstâncias. Quanto ao Norte, é preciso levantar o moral do povo e mesmo das classes dirigentes, vassalas da Assíria. Toda a gente descrê das autoridades e das instituições. Vive-se no medo. Ora, é a fé de um pequeno grupo, Isaías, a sua família e os seus discípulos, que se exprime no livro do Emanuel.

A esse propósito, lembremo-nos que no início da atuação do profeta há uma profunda crise em Jerusalém. O rei Acaz, receando a invasão de Tiglate-Pileser, rei da Assíria, julga que a idolatria, como era a prática habitual na região em tempos de crise (Baal de Tiro), o pode proteger. No entanto, o nascimento do herdeiro dinástico, Ezequias, faz surgir uma esperança que inspira as visões do profeta Isaias. Primeiramente, o célebre oráculo de Isaías 7:14 “uma jovem dará à luz um filho e seu nome será Emanuel”. No meio de tanta desolação, o nascimento desta criança é sinal de esperança! Mas, no cap. 9:6, o profeta vai muito mais longe. A sua esperança já não é meramente política. Davi, rei messiânico, terá um sucessor, mas o novo Davi será Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz. É uma função simultaneamente política, moral e espiritual. Isso manifesta-se no vocabulário utilizado: o novo príncipe dotado de poderes sobrenaturais, que, curiosamente, não é chamado rei, conduzirá o povo com justiça e obterá prosperidade. Deliberadamente vago, o oráculo deixa aberta a questão de saber quem é esse principe. Será Ezequias, a figura do Messias esperado? De qualquer modo ele está na origem do chamado messianismo real, que é a espectativa de um Rei ideal, escolhido por Deus, que governará o povo com justiça e o conduzirá à propsperidade.

Leitura minuciosa do texto

Proponho-vos agora que releiam o texto e destaquem as palavras que vos fazem vibrar. Sublinhem aquelas que mais vos impressionam. Anotem os movimentos no texto: como se deslocam as personagens? Qual é a sua postura corporal ou atitude? O que é que se passa entre o princípio e o fim do texto? O que é que o profeta vê no futuro que seja capaz de determinar a sua atualidade? O que é que descobriu?

Atualização

Confrontado ao sofrimento, à crise, o povo olha para cima e enfurece-se, amaldiçoando os responsáveis políticos e o próprio Deus. Olha para baixo e só vê angústia e escuridão…

Nada de novo debaixo do sol! Desde sempre a humanidade deseja conhecer as causas dos males que se abatem sobre ela e procura os responsáveis. Mas se é compreensível tentar identificar os responsáveis das infelicidades de que somos vítimas, diante do mal excessivo, inexplicável, sofrido, nehuma explicação racional subsiste. Assisti, um dia, uma conferência de um eminente filósofo marxista francês que se referia a essa situação como “o irracional na história humana” para a qual nem os idealistas, nem os materialistas, têm uma explicação suficiente. O problema do mal e do sofrimento é, de facto, insolúvel. Assim, as classes políticas e dirigentes, a economia, as hegemonias, o destino, os deuses e mesmo o próprio Deus Único, surgem como uma espécie de princípio explicativo ou causa daquilo que racionalmente somos incapazes de compreender.

Há três maneiras de dar a volta a este problema:
– a primeira é consideramo-nos vítimas de uma espécie de complot do destino
– a segunda é atribuir a Deus ou ao Diabo, cujos desígnios nos são inacessíveis, a origem do mal e do sofrimento
– a terceira é, estoicamente, assumirmos a vida como ela é resignando-nos a um certo agnosticismo.

Em qualquer dos casos, esse olhar para cima enfurecidos é tudo o que nos resta. Porque olhando para abaixo só vemos sombras e ansiedade (v.8:22).

No entanto, a maneira profética de abordar esta questão é diferente. Assumindo os limites da condição humana, recusando-se a especular sobre um problema de qualquer modo insolúvel, Isaías vai procurar a solução no futuro que nos espera e no qual ele deposita toda a sua confiança. Face às realidades penúltimas que são a violência, a injustiça, face às formas de sofrimento objetivo, mas igualmente às formas de sofrimento subjectivo, irracional porque excessivo, Isaias diz (v 9:1) que “a terra que foi angustiada não será entenebrecida”. Envileceu nos primeiros tempos (os tempos penúltimos) mas nos últimos temps enobreceu, prosperou, porque Deus ilumina a região da sombra da morte, porque Deus multiplicou a nação, porque Deus lhe aumentou a alegria, porque Deus a libertou do opressor. O próprio espólio do exército israelita, derrotado, em fuga, será queimado, deixando de ter qualquer significado. E a visão determinante desta atualidade radicalmente nova é um menino nascido, ofertado, um Príncipe cujo nome reunirá simbolicamente todas as virtudes: Maravilhoso (=terapeuta), Conselheiro, Deus forte, Pai, Pacificador.

“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz”! Esta frase ressoa fortemente. Ela tem alguma coisa a ver com a nossa actualidade particularmente obscura. A surda ameaça a que somos atualmente confrontados não vem, evidentemente, nem de Tiglate-Pileser, nem de Senaquerib, nem da China, nem de Trump, nem de Putine, nem do foro económico mundial ou do capitalismo selvagem, nem da penúria das matérias primas ou do aquecimento climático. O perigo vem da insignificância da nossa vida quotidiana neste período particularmente difícil que atravessamos, ou seja, a entrada numa nova civilização da qual não sabemos praticamente nada, mas que suspeitamos ameaçadora! Assim, resignamo-nos à insignificância, à banalidade, ao individualismo, à distração, ao consumismo, a uma religiosidade meramente utilitária, incapazes que somos de vislumbrar a Luz que pode iluminar as nossas trevas.

Mas que garantia temos nós de que a esperança de Isaías não se trata unicamente de palavras, isto é, de mais uma ideologia consoladora proclamando sorridentes amanhãs para desiludidos da existência? De facto, não temos resposta para esta questão. Muitos de nós ainda nos lembramos de um século passado marcado, ferido, por ideologias tanto de direita como de esquerda, pretensamente libertadoras e otimistas, mas que terminaram tristemente e ingloriamente. A crise atual da insignificância, a que me referia há pouco, tem alguma coisa a ver com tudo isso. Quando aquilo em que acreditamos e em que nos empenhamos se desfaz, o que é que nos resta senão a vida pessoal, a busca de uma felicidade individual, que sabemos limitada, relativa, mas capaz de ser a única coisa pela qual ainda somos capazes de nos bater?

Ora, aquilo que nos é proposto pelo profeta Isaias é finalmente simples: não nos resignemos porque o futuro vem ao nosso encontro! Vale a pena vivermos, lutarmos, comprometermo-nos, porque uma luz brilha retrospectivamente, desde o futuro, iluminando a nossa insignificância. Aquilo que nos espera é aquilo que já estamos a viver, aquilo que é bom, positivo, embora limitado. Não exclusivamente coisas religiosas. Múltiplas experiências associativas, ecológicas, sociais, sem se reclamarem de Deus, unem mulheres e homens à volta de valores de humanidade, de compaixão, de solidariedade, de busca de justiça, são portadoras dessa luz. No que diz respeito à Igreja ou às igrejas, elas sabem que a Esperança é uma dádiva divina. O sentido ou significado da existência é-lhes oferecido quando pela fé a Igreja está consciente de que participa, aqui e agora, no futuro que irremediavelmente se instala na história.

Conclusão

Assim, a nossa realidade quotidiana é transfigurada ao sabermos que Deus se preocupa conconsco, que ele nos ama como um Pai ou mãe amam os seus filhos, que ele atravessa connosco o tal sofrimento inexplicável que nos escandaliza. O sentido da cruz de Cristo é isso mesmo: Deus não é indiferente ao nosso sofrimento e assume-o totalmente. O que ele nos promete é uma vitória que progressivamente se realizará. As igrejas autênticas são pura e simplesmente zonas humanas libertadas aonde já é possível viver-se a realidade futura. Assim, ser cristão não é positivar a realidade fazendo de conta que as coisas não são finalmente tão más como parecem, mas sim viver sabendo que Deus e a humanidade estão doravante unidos e que o tempo de Deus (kairos) cruzando o tempo dos homens (cronos) perturbou a flecha do tempo cósmico. Nós não vamos do passado para o futuro. É o futuro que vem ao nosso encontro, transformando a nossa existência. Como diz o livro do Apocalipse 21:1-7: “Ví então um novo céu e uma nova terra. De facto, o primeiro céu e aprimeira terra despareceram e o mar já não existepassaram. E ouvi uma voz forte que dizia: Esta é a morada de Deus junto dos homens. Ele habitará com eles e eles serão o seu povo. É este Deus que estará com eles. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos e já não haverá mais morte, nem luto nem pranto nem dor porque as primeiras coisas desapareceram. Escreve que estas palavras são verídicas e dignas de confiança. É um facto. Eu sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. Ao que tem sede dou-lhe de beber de graça da fonte das águas vivas”.

Joel Lourenço Pinto

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