Liberdade e responsabilidade

O que mais me impressionou na mensagem de Desmond Tutu, o que eu retirei dela, foi a sua lucidez. O que importa na ação não é o resultado, mas sim o procedimento.

Lembro-me destas atitudes da sua vida, que constituem todo o seu carisma: Intransigência, Perseverança, Riso, Lágrimas.

Intransigência: nunca desistir, não estar disposto a fazer quaisquer concessões. Demorei anos a aceitar esta exigência. Durante muito tempo imaginei que, ao fazer concessões, seria capaz de me aproximar do objetivo. Mas, no fundo, estava a afastar-me dele. Sejamos claros, trata-se do contexto da opressão/oprimido.

Perseverança: foi um campeão, tendo-se mantido firme ao longo da sua vida militante. Ele retomou incansavelmente todos os temas que considerava importantes e reiterou-os.

Risos: famoso pelo seu humor, ele conseguiu desse modo ‘fazer entender’ muitas noções delicadas.

Lágrimas: era esta foi a sua enorme capacidade de compaixão. Isto foi visto especialmente durante as dolorosas sessões da Comissão de Verdade e Reconciliação. Ficou literalmente esmagado com tudo o que ouviu.

Sobre esta comissão – e eu tive a sorte de poder seguir alguns dos episódios em programas de televisão e de ler o livro de Antjie Krog, The Pain of Words (a dor das palavras) – como fazer outra coisa que não seja cair por terra e chorar? Sofrer com os outros, a compaixão na sua forma mais simples…

Nos artigos publicados após a morte de Desmond Tutu, encontrei algumas reflexões e testemunhos interessantes. Sobre a “Verdade e Reconciliação” algumas noções importantes foram destacadas:

 “Compreender certos acontecimentos”

“Contar a sua própria história” (pela primeira vez, pessoas anónimas foram ouvidas por toda uma nação… ajudámo-las a recuperar a sua dignidade)

“Já ninguém pode fingir ignorar o que aconteceu”

“Gigantesca psicanálise nacional”

“Estabelecer a verdade para promover a reconciliação”

Com efeito, o processo “Verdade e Reconciliação” resume, de maneira cintilante, a ação de Desmond Tutu. Nele se encontram características tais como intransigência, perseverança, choro, etc. 

Também se pode falar da sua integridade. Invencível contra as forças do apartheid, terno e vulnerável na compaixão pelos que sofreram opressão, injustiça e violência, mas também compaixão por todos os oprimidos e opressores do mundo inteiro.

Christine Taubira resumiu tudo isso, registando “ouvi o seu riso, conheci o som da sua raiva e vi as suas lágrimas de perto”. É um resumo admirável.

Depois desta minha perceção da pessoa que foi Desmond Tutu, passemos às suas ideias, à sua teologia.

Tutu considerava-se a ele próprio como um curandeiro ferido. Ele próprio tinha sido ferido (infância difícil, racismo) e teve de mergulhar nas trevas da sua história pessoal a fim de “reconstruir tudo o que tinha sido quebrado”, segundo as palavras de uma jornalista sul-africana, Maureen Isaacson. A partir daí, o tema da reparação foi central durante toda a sua vida, sendo o seu percurso espiritual inseparável da luta pela justiça. Gritou o seu protesto sem se desviar dos seus compromissos sociais.

Nest linha, ele prossegue dizendo que “é só quando começamos a compreender que Deus nos ama com a nossa fraqueza, com a nossa vulnerabilidade, com os nossos fracassos, que podemos começar a aceitá-los como uma parte inevitável da nossa existência. Só podemos amar os outros – com os seus fracassos – quando deixamos de nos desprezar a nós próprios por causa dos nossos fracassos”.

Ele sempre insistiu na sua visão do homem africano, citando ubuntu como modelo, nomeadamente, “Sou humano porque tenho aqui um lugar, participo, partilho”, como ele descreve no seu livro. Longe do “penso logo sou” tão comum na nossa cultura ocidental…

Outro tema importante que norteou toda a sua vida: a Reconciliação! E afirma-o claramente, à sua maneira habitual. O que ele diz é que a verdadeira reconciliação expõe o mal, o insulto, a dor, a ferida, a verdade. Pressupõe perdão, o perdão pressupõe uma verdadeira confissão e a confissão pressupõe … o arrependimento de tudo o que foi feito!

Notei no seu livro “Deus tem um sonho”, que foi escrito em 2004, as premissas do que será mais tarde desenvolvido no “O livro do perdão” de 2014. Se a vítima só pudesse perdoar quando o responsável confessasse a sua culpa, então ficaria prisioneiro dos caprichos do criminoso, prisioneiro da sua vitimização, independentemente da sua atitude ou intenção. O que seria manifestamente injusto. Desmond Tutu descreve essa situação de maneira acutilante: “Quando te perdoo, tu perdeste a capacidade de me definir. Tu mediste-me, avaliaste-me e decidiste que me podias magoar. Eu não valia nada aos teus olhos. Mas eu perdoo-te. Porque eu valho alguma coisa, tenho valor, sou maior do que a imagem que tu tens de mim, sou mais forte, mais belo e infinitamente mais precioso do que tu pensavas. Eu perdoo-te. Este perdão não é uma prenda que te ofereço. Quando te perdoo, este perdão é um prenda que dou a mim próprio”.

Ele apela para aquilo a que eu chamaria o confronto; ele diz que a nossa maturidade será julgada pela nossa capacidade em discordarmos e ainda assim continuarmos a amarmo-nos uns aos outros, a cuidar uns dos outros, a acarinharmo-nos uns aos outros e a procurar primeiro o bem dos outros. Penso que é o seu trajeto pessoal, a partir do sofrimento da sua infância, que lhe permite chegar a esta conclusão e viver de acordo com ela.

Finalmente, penso que é importante recordar o que Desmond Tutu disse sobre a liberdade. Fomos criados para sermos livres e é por isso que toda a opressão será um dia superada. Não posso deixar de citar um parágrafo do seu livro: “a autonomia é o fundamento da nossa liberdade; sem ela, nenhuma relação verdadeira com Deus – ou uns com os outros – seria possível. Ser humano, na linguagem da Bíblia, é ser livre de escolher amar ou odiar, ser amável ou cruel. Esta liberdade, que pode fazer de nós criaturas gloriosas ou condenar-nos a ser criaturas infernais, vem da nossa criação à imagem de Deus. Deus assumiu um risco incrível ao criar os seres humanos. Deus tem um respeito tão profundo – como dizer? – uma tal reverência por esta liberdade que ele preferiria ver-nos ir livremente para o inferno do que forçar-nos a ir para o céu”.

Liberdade e responsabilidade, tal é o caminho que Desmond Tutu nos aponta, mesmo após a sua morte.

Alain Schwaar

Alain Schwaar, é diácono da Igreja Reformada Suíça. Esteve ao serviço da Igreja Presbiteriana de Moçambique, tendo participado no processo de transição para a independência.

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