Daniel Bourguet, pastor e eremita

 

Embora as Igrejas da Reforma tenham em grande apreço a vida contemplativa e possuam a sua própria tradição de orantes, deve reconhecer-se que o misticismo é um tema pouco aparente no protestantismo. A razão desta sobriedade deve-se, provavelmente, à forte valorização da espiritualidade de todos os crentes e não só de alguns. Porque todos são santos, porque todos são sacerdotes diante de Deus intercedendo pelo mundo, a vida espiritual e mística está ao alcance de todos e não tem mais valor do que a banalidade da vida secular.

Portanto, para compreendermos a Reforma protestante, precisamos descobrir que se trata primeiramente de um movimento espiritual que se propõe libertar a fé dos crentes do controlo abusivo da hierarquia eclesiástica, através da experiência pessoal de Deus e da leitura da Bíblia, na mesma linha de outras reformas medievais que a precederam. Os aspetos teológicos, culturais e políticos são secundários: tal é a convicção de um grande especialista da História Medieval, Jean Delumeau (cf. La Peur en occident, Paris, Fayard, 1978), professor universitário e católico romano convicto.

Figuras como Jacob Böhme, George Fox, Emmanuel Swedenborg, William Blake, Gerhard Tersteegen, Emma Curtis Hopkins, Max Heindel, Albert Schwezer, Sadhu Sundar Sing ou Dietrich Bonhoefer, são exemplos desta corrente mistica protestante. Porém, a redescoberta da tradição mística interconfessional pode ser um enriquecimento espiritual.  O silêncio interior e a contemplação como experiência espiritual transformadora, são um desafio para o protestantismo que oscila frequentemente entre o intelectualismo e a exaltação dos sentimentos.

Entre os diversos orantes protestantes contemporâneos, gostaria de destacar o pastor Daniel Bourguet. Foi em 1996 que este pastor da Igreja Reformada (presbiteriana) de França e ex-professor das faculdades de teologia protestante de Montpellier e Paris, decidiu viver como eremita na Comunidade protestante reformada de Pomeyrol.  Barba farta, sorriso acolhedor e bondoso, Daniel Bourguet, hoje com 75 anos de idade, vive retirado numa humilde cabana feita de troncos e de ramos de árvores da região. Isso não o impede de receber quem lhe solicita um conselho espiritual, nem mesmo de dirigir retiros espirituais. Embora viva o mais longe possível dos homens, são estes que veem ter com ele. Acolher os outros, diz o irmão Daniel, “é abrir-se a quem se abre. Há então um profundo diálogo. Sei que neste nosso mundo mediático, hiper-comunicativo, são poucos, paradoxalmente, os que estão disponíveis para escutar os outros. É aqui que o eremita tem o seu lugar específico. Escutar, para depois levar o mundo na sua oração. Um dia, nos confins dos Cárpatos, tive a oportunidade de conhecer um eremita romeno que me disse isto: Lembra-te que não és um eremita para os protestantes, mas para a terra inteira!”.

A sua disciplina de vida não exclui uma intensa atividade intelectual, tendo publicado dezenas de livros sobre a Bíblia (Daniel Bourguet é biblista) e a Espiritualidade. Alguns destes livros estão traduzidos em inglês e espanhol. Ofereço-vos alguns fragmentos.

A leitura espiritual da Bíblia

“Vejo, cada vez mais, que uma única palavra bíblica é um oceano de vida. Cada palavra está viva. Na sua Palavra, Deus entrega-se totalmente, ao ponto de se tornar a nossa carne. Ele entra nas nossas vidas para transfigurá-las. A meditação abre o coração a esta vida de Deus.

Cada palavra bíblica é também um oceano de amor. Se uma palavra parece dizer o contrário deste amor, paro e procuro o seu significado, até que se enraíze neste amor, caso contrário compreendi mal, pois do Deus do amor só podem vir palavras de amor, sabendo que a raiva de Deus fala do seu amor ferido.

Em cada palavra bíblica também observo o amor de quem a redigiu. Cada versículo, cada palavra é, por assim dizer, amassada com o amor do seu redator. Quanto amor foi preciso para escrever “No princípio Deus criou o céu e a terra…”! Quem escreveu isto não estava lá, mas estava cheia de um imenso amor que lhe permitiu compreender o amor que foi preciso para que Deus criasse todo o universo. Diante deste encontro entre o amor de Deus e o amor do autor bíblico, o amor desperta em mim e preenche a minha leitura, ao ponto de, por vezes me marcar durante um dia inteiro.

Leio cada vez mais devagar para não perder a profundidade das palavras, o seu peso de amor, o seu jorrar de vida e de luz” (Dieu au cœur de nos vies, 2002)

A renovação da Igreja

“Acendendo o meu fogo de lenha,

Onde alguns troncos estavam molhados,

Precisei de madeira seca

Para que tudo ardesse.

Hoje, vejo-te desapontado com a tua igreja,

Onde poucos são os cristãos que ardem com a divina chama!

Mas não te desanimes:

Esforça-te unicamente em arder com todo o teu ser

E os que estão ao teu lado acabarão por se abrasar…

Vejo-te igualmente desiludido de ti próprio,

Descobrindo a tua incapacidade para seres uma boa chama!

Mas não te desencorajes:

Aproxima-te de Cristo, que todo ele é um fogo,

E verás que o seu fogo arderá em ti

De tal forma que outros, ao aproximarem-se,

Também começarão a arder” (Construire ensemble, 2002)

 

Uma parabola

“Querida macieira, diz-me mais uma coisa … De que é que te alimentas? – Não te vou contar tudo, respondeu-me a macieira. Basta saberes que a comida me é dada em segredo. Absorvo-a de raízes que tu não vês e que devem permanecer escondidas. Através delas recebo sempre o meu alimento da escuridão da terra. Sem esta comida eu não daria maçãs. Fica a saber que os meus frutos resultam daquilo que absorvo com as minhas raízes, e é provavelmente por isso que não se parecem comigo. Na realidade, não vêm de mim. Isto chega-te. Percebe que é a mesma coisa para vós, homens. O que precisa para amar procede de Deus no segredo da vossa oração. Não te digo mais nada: aplica-te à oração e ficarás coberto de frutos” (Dieu au coeur de nos vies, 2002)

Joel Lourenço Pinto

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