Protestantismo e vida monástica: uma contradição permnente?
Impõe-se, à partida, lembrarmo-nos que o movimento monástico cristão surgiu no século III, a partir das experiências ascéticas de Antão do deserto (251-356), e é quase tão antigo como o próprio cristianismo. Este movimento surgiu não só como uma exigência de conformidade com os ideais evangélicos ressentida pessoalmente por alguns cristãos (anacoretas), mas também, coletivamente (cenobitas), dedicados à oração, trabalho manual e estudo, como um apelo para que a Igreja se mantivesse fiel à mensagem de Jesus Cristo. Graças ao monaquismo, o vento reformador do Espírito soprou regularmente sobre a Igreja, propondo-lhe formas de vida inspiradas pelo Evangelho, como a pobreza e a não-violência. Muito devemos, por exemplo, aos beneditinos e aos franciscanos…
Mas, como todos os movimentos, o monaquismo conheceu altos e baixos. O enorme desenvolvimento dos mosteiros durante a Idade Média, a sua crescente importância na gestão dos novos centros urbanos e o seu enriquecimento, gerou desfasamento em relação ao ideal de vida monástico. Daí a necessidade de reformar o sistema cenobítico a partir do século X (reforma gregoriana). Quando surgiu a Reforma protestante, no século XVI, a crítica dos abusos do clero e o fausto dos religiosos, ainda era bastante viva. Temos um eco muito significativo desta posição critica em Erasmo de Roterdão que, sem abandonar o catolicismo, apelou em muitas das suas obras para uma reforma da vida religiosa, considerando os monges e frades “ignorantes, briguentos e orgulhosos, insensatamente apegados à sua regra, mas prontos a comprometerem-se com o mundo”. Para Erasmo, a via da santidade não passava pelos votos de pobreza, castidade e obediência, mas sim pelo “primeiro e único voto que é o do batismo”. É neste contexto de descredibilização do ideal monástico que os reformadores protestantes, na mesma linha de Erasmo, consideravam a vida monacal desnecessária ou até mesmo contrária ao Evangelho, quando fixa como objetivo a retirada do mundo. Lutero foi particularmente explícito. Dizia ele, Dein Ruf ist dein Beruf (a tua vocação é a tua profissão)! Este jogo de palavras em alemão, tornou-se uma máxima que resume o parecer da Reforma protestante sobre o monaquismo, afirmando que o ideal religioso deve realizar-se no mundo e não num mosteiro, valorizando as atividades seculares. Por outro lado, a exigência do celibato parecia-lhe ser contrária à injunção bíblica “crescei e multiplicai-vos” e à visão positiva da sexualidade que se manifesta, especialmente, no Antigo Testamento. Lutero escreveu páginas interessantíssimas e de grande perspicácia, sobre o desejo sexual, a conjugalidade e o celibato…
A via monástica nas Igrejas da Reforma
Apesar do azedume da polémica entre os reformadores e o catolicismo da época, o protestantismo histórico acabou por adotar, um século mais tarde, uma posição mais serena e objetiva em relação ao monaquismo. Com efeito, não é verdade que o Evangelho nos diz que quem deseja seguir Jesus Cristo deve renunciar-se a si-mesmo e abdicar dos valores do mundo? Ora, é esta exigência evangélica radical que era reivindicada pelas comunidades de vida anabatistas [1] que criticavam o protestantismo nascente, demasiado dependente dos príncipes alemães e envolvido em conflitos violentos contrários ao dever evangélico do perdão e da reconciliação. Estas comunidades, que ainda hoje existem, com o nome de Igrejas Menonitas, algumas delas bastante radicais como os Amiches ou os Irmãos Hutteritas, adotaram normas que se assemelham surpreendentemente às regras da vida monástica: consenso, partilha dos bens, sobriedade vestimentária, trabalho agrícola comunitário, oração e estudo quotidiano das Escrituras. A diferença é que as comunidades anabatistas são constituídas por famílias e que o celibato não é, de modo algum, encorajado…
No decorrer do século XVII surgem místicos no seio do luteranismo propondo uma relação pessoal com Deus, como Jakob Böhme (1575 – 1624) cuja influência espiritual foi considerável. Böhme era um luterano muito piedoso que se recolheu numa caverna para viver como eremita e que afirmava ter experimentado uma relação imediata com Deus, assim como diversas visões que o iniciaram na vida contemplativa. A sua obra, de tendência esotérica, influenciou a gnose moderna (Alquimia, Teosofia, Antroposofia, Simbolismo). Um outro místico luterano importante, muito próximo de Böhme, foi Angelus Silesius [1] ou Johann Scheffer (1624-1677), o seu nome de batismo, que se converteu posteriormente ao catolicismo, retirando-se num convento franciscano.
Paralelamente, desenvolveu-se no luteranismo um movimento que influenciou toda a área religiosa protestante, propondo uma espiritualidade marcadamente emocional, contemplativa, assim como a prática assídua do exame de consciência, por vezes transcrita minuciosamente em diários íntimos. Foi o pastor luterano Jacob Spener (1635-1705) quem organizou os “colégios de piedade” (collegia pietatis), ou seja, pequenos grupos de oração e de partilha da leitura das Escrituras que insistiam na necessidade de uma piedade pessoal e contemplativa, julgada superior à ortodoxia doutrinal. O vigor espiritual destes grupos marcou profundamente outro pastor luterano, o conde Nicolaus von Zizendorf (1700-1760), oriundo da alta aristocracia de Sax, que viu neles uma possibilidade de unir os cristãos divididos pelas doutrinas e organizações eclesiásticas, numa base espiritual. Os Irmãos da Unidade (Unitas fratrum), mais tarde conhecidos como Irmãos Moravos, com sede em Hernhut, são a expressão organizada deste movimento espiritual. É agradável sublinhar a sua dimensão ecuménica, numa época que ainda recordava dolorosamente as recentes guerras de religião. O facto do pietismo não ter pretendido ser uma nova Igreja, de afirmar que a unidade cristã autêntica não se realiza na unanimidade institucional, mas sim nos grupos fraternais de oração e de partilha das Escrituras num espírito de escuta mútua e de perdão, admitindo que o pluralismo é inerente ao Cristianismo, é algo que deve ser salientado! A influência dos Moravos foi imensa tanto na Alemanha como na Suíça e, até mesmo, o que não pode deixar de nos surpreender, na Ortodoxia russa da região de S. Petersburgo. Entre as numerosas figuras intelectuais e artísticas influenciados pelo pietismo luterano encontram-se os filósofos Kant, Lessing e Kirkegaard, o teólogo Schleiermacher, o compositor João Sebastião Bach e o poeta Hólderlin.
O século XIX
No mundo anglo-saxónico, surgiram igualmente no fim do século XVIII e início do século XIX, vários movimentos ou Igrejas livres (free churches) propondo um reavivamento da Fé através da conversão individual, de uma intensa vida fraternal e de uma responsabilidade social em relação às populações desenraizadas da Grã-Bretanha devido à industrialização, e da América do Norte devido à emigração. O Metodismo, o Exército da Salvação, o Darbysmo, os grupos de Oxford e, de maneira geral, a grande maioria das Igrejas Evangélicas do século XIX, pretenderam implementar um Cristianismo autêntico de que tinham falavam os pietistas alemães, Das wahre Christentum como dizia Spener, e que consistia no agrupamento informal dos cristãos em torno das Escrituras, motivados pela vida de oração, pela vida comunitária e por uma moralidade e ascese exemplares.
Paralelamente, as Igrejas Luteranas e Reformadas, alemãs, suíças, francesas e escandinavas, conhecem um desenvolvimento importante das comunidades religiosas.
Primeiramente, Theodor Fliedner fundou a primeira casa-mãe para “diaconisas”, em 1836, em Kaiserswerth (hoje, Düsseldorf). Através dos votos tradicionais de pobreza, castidade e obediência, estas mulheres pretendiam servir o próximo como enfermeiras e assistentes paroquiais, visitando os doentes e os necessitados. A formação profissional aí ministrada e a sua aplicação prática permitiram às mulheres solteiras desempenhar um papel social na igreja e na sociedade.
Pouco tempo depois, François Härter, fundador das diaconisas de Estrasburgo (1842), inspirado pelas ordens caritativas do catolicismo, nascidas no século XVII sob o impulso de Vicente de Paulo, e dado que “nada de semelhante existia no protestantismo”, inicia um movimento de “irmãs evangélicas da misericórdia”. Ao escrever a regra para diaconisas, inspirou-se na regra de Port Royal (sede do jansenismo ou pietismo católico romano francês).
O movimento das diaconisas desenvolveu-se fortemente na Alemanha, países escandinavos, Suíça e França, e ainda representa uma parte importante do monaquismo protestante. É de notar que vários fundadores deste movimento também tiveram uma forte visão ecuménica: “Oh, quando é que chegará o momento em que as palavras protestantes e católicas serão lembradas apenas para agradecer ao Senhor por já não existirem, e quando é que a grande família cristã saciará a sua sede na fonte de água-viva que jorrará para a vida eterna!”, exclama Caroline Malvesin, co-fundadora das diaconisas de Reuilly (1841) que ainda hoje existe, perto de Versalhes, na França.
Dito isto, contrariamente ao que se pensa geralmente em certos meios protestantes, embora a Reforma tenha criticado os excessos do monaquismo ela guardou o essencial da vida religiosa tradicional. A tal ponto que podemos dizer, sem muita hesitação, que os movimentos comunitários surgidos no interior do protestantismo estabelecido – as chamadas Igrejas protestantes históricas – e as próprias comunidades protestantes livres (free churches), podem ser consideradas comunidades monásticas de um novo tipo, nas quais as famílias podem participar. Porém,
O céu está em ti… mas o inferno, também!
Como em todos os movimentos de índole espiritual, seja qual for a tradição, existe sempre a possibilidade da emoção religiosa e do zelo excessivo poderem transformar-se em individualismo e intolerância. Infelizmente, o protestantismo sucumbiu com frequência ao facciosismo porque, na ausência de uma instância moderadora por todos reconhecida, é um terreno propício a este tipo de deriva. Se “o céu está em ti”, como dizia Angelus Silesius, já citado, pode dizer-se igualmente num rasgo de lucidez que se o céu está em ti, também o inferno está! É por essa razão que o protestantismo se recusa a idealizar a vida comunitária e a dimensão mística da fé, porque a Reforma da Igreja é um trabalho permanente e inacabado.
É nesta base que o protestantismo histórico luterano, reformado (presbiteriano) e anglicano, redescobriu a vida religiosa consagrada e contemplativa durante o século XX.
O século XX
Em 1923, o pastor da Igreja Reformada francesa Wilfred Monod, funda a Ordem Terceira dos Sentinelas ou vigias (Veilleurs), em referência ao apelo de Cristo “Vigiai e orai”. Durante a sua carreira pastoral e docente (foi professor de Teologia em Montaubin e Paris), Wilfred Monod considerava que o estudo e a oração seriam insuficientes sem a xperiência da dimensão social do Evangelho. Inspirando-se da figura de Francisco de Assis criou esta comunidade laica e mixta (solteiros, casados, homens e mulheres) que recebeu como regra um texto redigido em 1922 pelo seu próprio filho Theodore Monod (1902-2000), mais conhecido como naturalista e botanista do que como filósofo e teólogo. O lema desta fraternidade é “Alegria, Simplicidade e Misericórdia” e os seus membros têm por vocação orar três vezes por dia, individualmente ou em grupo, meditar sobre a cruz de Cristo às sextas-feiras e participar no culto público dominical na região onde residem. Depois de um período de noviciado os “Sentinelas” comprometem-se por escrito a aderir à regra da comunidade. Este compromisso é renovado anualmente num retiro anual regional que dura três dias. A originalidade do movimento, que conta com algumas centenas de membros na França e na Suíça de língua francesa, reside na união da vida de oração, com a partilha dos bens e o empenhamento social. Segundo as palavras de Wilfred Monod “O Sentinela é solidário com toda a Igreja e com o próprio mundo, e não se separa dele. Como membro do corpo de Cristo, frequenta o culto de adoração da sua paróquia. Ele deseja ser – discreta e humildemente – a alma orante e atuante da Igreja e estar assim com os outros (comunidades e indivíduos). Desta forma, contribui para a construção local da igreja e para a sua unidade ecuménica” .
Na Escócia, o barão George MacLeod, pastor da Igreja presbiteriana escocesa, fundou em 1938 a comunidade de Iona, reconstruindo a antiga Abadia com a ajuda de alguns colegas, estudantes e desempregados. Esta comunidade caracterizava-se então pela sua preocupação social e pelo desejo de revalorizar as origens celtas do cristianismo escocês. A participação de irmãos e irmãs, tanto solteiros como casados, de origens confessionais diversas, deu à comunidade de Iona uma dimensão ecuménica.
Foi em 1940 que Roger Schütz (1915-2005) e Max Thurian (1921-1996), dois pastores da Igreja Reformada Suíça, se instalaram em Taizé, uma pequena aldeia de Borgonha, perto de Cluny. A comunidade de Taizé, embora de origem reformada, cedo admitiu a sua vocação ecuménica, como se verifica na revista “Verbum Caro” e nas publicações de Roger Schütz e Max Thurian. Este último, provavelmente desiludido com o desinteresse manifestado pelos protestantes em relação ao documento “Batismo, Eucaristia e Ministério” publicado pela comissão Fé e Constituição (WCC) que ele próprio presidiu, foi ordenado padre católico romano em 1987. No entanto, segundo as palavras do irmão Aloïs, atual prior de Taizé de origem católica romana, Roger Schütz, cujas convicções relativas ao Ministério Sacerdotal e à Eucaristia foram reconhecidas como católicas por Paulo VI e João Paulo II, manteve-se pastor da Igreja Reformada até ao fim da sua vida (foi assassinado durante um ofício em 2005). Atualmente, esta comunidade ecuménica é constituída maioritariamente por irmãos oriundos do catolicismo romano, tendo adquirido uma notoriedade mundial.
No mesmo ano, Irène Burnat da Igreja Reformada Suíça, sente-se chamada para a vida contemplativa. Juntamente com Geneviève Micheli que será a primeira Madre superiora da comunidade de Grandchamp (Neuchâtel, Suíça), reúnem à sua volta um grupo de mulheres oriundas das elites sociais e intelectuais da Suíça de língua francesa. A Comunidade de Grandchamp, de vocação ecuménica, adotou a regra de Taizé e é maioritariamente constituída de irmãs reformadas e luteranas. A sua vocação é a contemplação e o acolhimento. Durante todo o ano reúnem-se em Grandchamp várias centenas de cristãos, suíços e europeus, em busca de silêncio e de uma espiritualidade inclusiva. A Comunidade de Grandchamp está integrada na Igreja Reformada do Cantão de Neuchâtel, sendo membro do seu Sínodo. Desde o início da comunidade, a Madre superiora exerce o ministério diaconal na Igreja Reformada. Existe ainda, associada à Comunidade, uma Ordem Terceira da Unidade que a apoia financeiramente e participa assiduamente nos ofícios quotidianos.
Finalmente, foi em 1950 que Antoinette Butte (1998-1986), conhecida resistente espiritual e não violenta ao nazismo, funda a Comunidade de Pomeyrol apoiada pelo pastor Marc Boegner (1881-1970) da Igreja Reformada, presidente da Federação Protestante de França e membro eminente – e fundador – do Conselho Ecuménico das Igrejas (WCC). Em 1953, a comunidade foi reconhecida pelo Sínodo regional da Igreja Reformada tendo, desde então, exercido um papel importante na vida desta Igreja. Situada na Provença católica, mas não muito longe do Lanquedoc protestante, a Comunidade de Pomeyrol afirma-se como um elo entre as Igrejas. Embora tenha adotado a regra de São Bento, a comunidade afirma claramente sua identidade reformada aberta à catolicidade. Existe em Pomeyrol um espaço espiritual denominado “Les Abeillères” destinado ao silêncio e à oração. Vive nesse espaço, como eremita, o pastor Daniel Bourget, ex-professor de teologia em Montpellier e Paris. Daniel Bourget é um membro eminente da fraternidade “des Veilleurs” de que foi prior durante alguns anos.
Conclusão, em forma de grito de esperança
“A falta de comunhão é a pobreza, a doença, a nudez, a vergonha da Igreja, e nem uma teologia correta, nem pregação de acordo com as Escrituras, nem uma bela liturgia, nem uma esplêndida música sacra, nem uma arte de alto nível, nem uma organização bem elaborada, nem o zelo missionário, nem a luta contra um mundo maldoso, podem encobrir esta nudez ou esconder este vazio… Quando nos aproximamos de Deus, Ele pergunta-nos: onde está o teu irmão? A Igreja Cristã ou é uma comunidade fraternal ou não é” (W. Stählin, La communauté fraternelle, Paris, Cerf, 1980)
“Quando me interrogo sobre o que esperamos da nossa vida comunitária, a resposta que me vem à cabeça é esta: uma vida em que sejamos capazes de assumir responsabilidade uns pelos pelos outros, uma vida que seja muito simples em todos os aspetos, na expressão das palavras, nos encontros, no intercâmbio, na forma como organizamos as nossas casas, na hospitalidade. Uma vida que seja como uma simples linguagem na qual se reconhece um sinal do Evangelho” (Roger Schütz, Choisir d’aimer un frère, Taizé, 2006).
Quem são esses protestantes, essas mulheres e esses homens que decidiram aprofundar as dimensões fundamentais do Evangelho que são a koinonia, leitourguia, diakonia e martyria (comunhão, oração, serviço e testemunho)? São simplesmente cristãos que, tendo ultrapassado as limitações das barreiras confessionais se reúnem em Cristo, com todos os outros orantes, numa comunhão cósmica de que Ele é a cabeça. O corpo místico de Cristo é uma realidade que transcende os nossos limites e nos apela para que manifestemos, na medida das nossas possibilidades, a unidade e a visibilidade desse mesmo corpo.
Joel Lourenço Pinto