A espiritualidade dos primeiros cristãos

Uma entrevista do professor Jean Zumstein

Apesar do declínio do cristianismo institucional, historiadores, escritores e jornalistas têm tentado, nos últimos anos, esquissar um retrato historicamente consistente da figura de Jesus de Nazaré, convidando os seus leitores a tomar conhecimento de documentos que permitem, segundo eles, suplantar os chavões veiculados pelos responsáveis eclesiásticos. Pensa-se assim que a publicação de textos que tinham sido ostracizados pela Igreja, ou de que se desconhecia mesmo a existência, permite uma nova compreensão do prodigioso destino de Jesus de Nazaré…

Este interesse repetido pelo Jesus histórico manifestado nas últimas décadas só pode regozijar-nos, sobretudo numa época que evidencia uma certa amnésia sobre os fundamentos culturais e espirituais do Ocidente. No entanto, a suspeição manifestada em muitas dessas publicações sobre a honestidade intelectual dos investigadores cristãos, deixa-nos frequentemente perplexos, sobretudo quando sabemos que são precisamente os universitários cristãos, tanto biblistas como arqueólogos, que têm dinamizado a pesquiza sobre Jesus e o seu movimento. A estes têm-se juntado investigadores imparciais, tanto agnósticos como israelitas, e o número de publicações em colaboração científica é considerável. Qualquer historiador sério deste período da Antiguidade sabe quanto deve às Faculdades de Teologia protestantes e católicas romanas das Universidades alemãs, suíças, britânicas e americanas, não esquecendo a Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, animada por uma comunidade de eruditos dominicanos, e a Universidade Hebraica cujo departamento de Arqueologia trabalha em estreita parceria com os pesquisadores cristãos.

Dito isto, os biblistas também são capazes de descer de vez em quando das suas cátedras universitárias para oferecerem ao grande público informações históricas acessíveis e fidedignas.  Foi o que aconteceu recentemente com a publicação, no início deste ano, do livro de Jean Zumstein “Nos passos de Jesus” [1]. Este investigador e autor respeitado internacionalmente na área do Novo Testamento (publicou recentemente um comentário monumental do evangelho de S. João, em dois volumes, simultaneamente em francês, inglês, alemão e espanhol), brinda-nos hoje com um estudo que se interessa não somente pela história do Movimento de Jesus, mas igualmente e sobretudo, pela espiritualidade daquelas e daqueles que acreditaram na sua mensagem e formaram as primeiras comunidades cristãs. Este livro, acessível à maioria dos leitores, oferece-nos uma informação histórica e teológica importantíssima sobre os arcanos da sua espiritualidade cristã e sobre a sua originalidade em relação às antigas sabedorias e às grandes religiões. É um livro muito atual e indispensável, que muito gostaríamos de ver publicado em português. É com grande satisfação que propomos esta entrevista exclusiva do prof. Jean Zumstein.

Joel Lourenço Pinto

[1] Sur les traces de Jésus, Labor et Fides, Genève, 2021. Nota: o prof. Zumstein esteve em Lisboa, em outubro de 2016, tendo feito uma conferência sobre o tema da “Justificação” na carta de S. Paulo aos Romanos, na Igreja Presbiteriana de Lisboa.

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ENTREVISTA (Lausana, 7 de junho de 2021)

ItineráriosHá anos que são publicados inúmeros ensaios históricos, com o objetivo de transmitir ao grande público os mais recentes resultados das pesquizas sobre esta figura incontornável que é Jesus de Nazaré e sobre a literatura que a ele se refere, mas que não foi integrada no Novo Testamento. Ao publicar, em janeiro, mais um estudo sobre Jesus e a espiritualidade do cristianismo primitivo, qual é o seu objetivo?

JZ – Para bem compreender o objetivo do meu livro, devemos relacioná-lo com a atual situação socio-religiosa na Europa Ocidental. Vivemos plenamente num período de pós-cristandade. Esta mudança de paradigma começou certamente há muito tempo, mas sofreu uma tremenda aceleração no início do século XXI.  Este último manifestou-se na Suíça, em particular, pelo colapso das grandes igrejas históricas reconhecidas – seja a igreja protestante ou, em menor grau, a Igreja Católica Romana.

A este respeito, a transformação do vocabulário é particularmente significativa. O termo “religião”, que até há algumas décadas descrevia um elemento não problemático da identidade social, tornou-se suspeito. Está agora associada ao fanatismo, à violência e a uma postura retrógrada, condenada a desaparecer ou, pelo menos, a ser relegada para as margens das nossas sociedades. Às sociedades marcadas no passado pelos seus laços religiosos ou, se preferirmos, confessionais, sucederam sociedades que querem ser seculares e das quais os religiosos devem ser banidos ou confinados ao espaço estritamente privado.

Embora este movimento de secularização acelerada seja indiscutível é, no entanto, acompanhado por um fenómeno imprevisto. Na verdade, não estamos a assistir ao surgimento de sociedades estritamente seculares e agnósticas, mas sim à rápida eflorescência das mais diversas espiritualidades. Basta pensar aqui no imenso sucesso da meditação da “consciência plena” (mindfulness), mas também no yoga, na espiritualidade ecológica e até mesmo no xamanismo. Sem esquecer que outras grandes tradições religiosas ganharam uma posição sólida na Europa. Podemos pensar aqui no Islão ou no Budismo. Isto significa que, embora a religião cristã no sentido tradicional do termo tenha entrado em colapso, a busca espiritual do ser humano não morreu. Todos continuam a questionar-se sobre o enigma da vida, sobre o que é uma “boa vida”.

Ora, nesta grande nebulosa das espiritualidades que ocupa o espaço público, há uma que, como dissemos, se tornou totalmente inaudível. Refiro-me à espiritualidade dos primeiros cristãos que, depois de ter dominado a cena ocidental durante séculos, está cada vez mais à margem. O objetivo do meu livro é dar voz aos primeiros companheiros de Jesus, mostrar como o ensino e a vida do seu mestre foi a base de uma espiritualidade que lhes permitiu compreender a sua existência e envolver-se no mundo. A minha intenção não é apologética: não quero provar a superioridade ou a verdade da espiritualidade dos primeiros cristãos sobre outras espiritualidades! Também não é restauradora: restabelecer a credibilidade das igrejas oficiais! Eu só quero tentar esboçar a partir dos textos fundadores, neste caso a Bíblia, quais foram as linhas gerais da convicção que animava os primeiros cristãos e que mudou o mundo da Antiguidade.

Itinerários Pode dizer-nos o que entende por espiritualidade dos primeiros cristãos?

JZ – Nas nossas sociedades, a palavra “espiritualidade” substituiu, num sentido positivo, a da “religião”. Se a religião é agora mal vista, a espiritualidade goza de um crédito considerável. Mas neste grande mercado onde as mais diversas ofertas roçam uma nas outras, onde todos são chamados a compor o seu menu pessoal, o que é que se entende por “espiritualidade”? É uma emoção? É um estado interior? É uma prática ritual estruturada? É uma convicção elaborada? Do que se trata? Para tal pergunta, a resposta é plural. Mas talvez seja bom recordar a posição dos cristãos primitivos, que partilhavam com as grandes sabedorias da Antiguidade.

Para eles, a séde da espiritualidade é a vida interior ou, se preferir, a interioridade que consiste no diálogo ou conversa íntima que temos connosco próprios durante toda a nossa vida. É o que me constitui nas profundezas de mim mesmo sem que os outros tenham acesso a ela. Esta conversa interior é sobre as minhas emoções, os meus pensamentos, os meus projetos. Dá sentido ao que experimentei, ao que enfrento, ao que prevejo. Leva a comportamentos concretos, sustenta a ação. Este diálogo interior nunca acaba, recomeça dia após dia, é inseparável da minha experiência. Acompanha-me até à morte.

Para os cristãos primitivos, esta conversa interior sobre o significado da experiência é alimentada por uma palavra. Palavra que está contida na sua memória cultural que comemora a mensagem e a ação de Jesus. A vida interior não está, portanto, fechada sobre si mesma, mas abre-se à palavra de um Outro.

ItineráriosA espiritualidade genuinamente cristã seria, portanto, mais de tipo relacional do que introspetivo?

JZ – Com efeito, esta abertura a uma palavra que nos interpela, porque vem de fora, é uma abertura necessária à alteridade. Isso permite-nos afirmar que a espiritualidade cristã é uma espiritualidade da relação. Não estamos a lidar com um “eu” isolado que se esgotaria na introspeção. A espiritualidade cristã constrói-se na relação.

Na relação comigo mesmo: sou capaz de me distanciar de mim mesmo, de deliberar comigo mesmo, de questionar a minha consciência, de identificar as minhas dúvidas, as minhas perguntas e de me submeter ao fogo ardente da minha mente crítica…

Na relação com Deus: é através da sua palavra que descubro o meu lugar no mundo, que discirno os valores que alimentam a minha vida, e é através do seu olhar benevolente que obtenho autoestima…

Na relação com os outros: é no encontro do próximo que me construo, que expando o meu horizonte, que vivo o amor e a fraternidade…

No encontro com o mundo: não vivo numa bolha, mas num mundo que já lá está com as suas maravilhas e desastres. A espiritualidade cristã é fundamentalmente uma espiritualidade no diálogo…

ItineráriosComo é que entende a originalidade da espiritualidade dos primeiros cristãos no contexto das espiritualidades da época?

JZ – A espiritualidade dos cristãos primitivos não é uma espiritualidade sectária, isto é, separada do seu ambiente religioso, filosófico, social ou político. Jesus era um judeu empenhado, alimentado pelas Escrituras do seu povo. Ele discutia com os vários grupos confessionais do judaísmo da época (pode-se pensar nas autoridades religiosas de Jerusalém, João Batista, fariseus, os Saduceus, os mestres da Lei, …). O apóstolo Paulo, por seu lado, tinha uma dupla cultura judaica e helenística, que ele conhecia bastante bem. Tinha um conhecimento perfeito da filosofia popular grega e das grandes religiões então praticadas no Oriente. É por isso que a espiritualidade dos primeiros cristãos permanece incompreensível se for separada do património que a alimenta, isto é, da tradição veterotestamentaria, judaica, e da sua relação com as grandes sabedorias da época, em particular Sócrates, o epicurismo ou o estoicismo. Assim, se reivindicarmos hoje a espiritualidade dos primeiros cristãos, o diálogo com a cultura, em todas as suas formas, deve continuar. Como resultado, integrei ao longo do meu livro muitas alusões a figuras proeminentes da literatura, filosofia e teologia que marcaram a história espiritual do Ocidente. A espiritualidade que herdámos dos primeiros cristãos continua, portanto, a ser uma espiritualidade aberta, em conversa com os diferentes movimentos que marcaram a nossa história, bem como com aqueles que estão hoje diante do palco intelectual atual. A espiritualidade que esbocei, portanto, vive de um duplo movimento: é um retomar constante do acontecimento fundador, mas este início fundador deve ser questionado do lugar que é nosso, a partir das nossas interrogações, das nossas experiências, do nosso conhecimento.

Acrescenta-se que a espiritualidade que apresento, é habitada por uma exigência que está no cerne da mensagem de Jesus: a exigência do respeito. No diálogo que tenho com o próximo ou com outros grupos, estou vinculado ao respeito incondicional. A verdade que penso que represento nunca deve ser agressiva ou destrutiva das outras, caso contrário, negar-se-á a si própria. A tolerância exigida pressupõe tanto a coragem da convicção como o respeito pelo interlocutor.

ItineráriosProfessor Zumstein, pode resumir-nos o seu livro?

JZ – A espiritualidade dos primeiros cristãos, tal como a reconstruo, essencialmente a partir dos evangelhos e das cartas de Paulo, cristaliza-se numa série de temas que enumero rapidamente.

Primeiramente, Deus. É esta a relação fundadora da espiritualidade dos primeiros cristãos. Mas o Deus em questão não é o Deus dos filósofos. É um Deus simultaneamente próximo e longínquo, presente embora escondido.

Para o descobrir, o crente tem de passar por uma crise de conhecimento – uma crise que o leva a questionar-se, ou mesmo a desconstruir radicalmente todas as representações que faz de Deus, tal como da sua própria vida. Ao pôr em causa a sua visão de Deus, de si mesmo e do mundo, o crente descobre que a primeira palavra proferida sobre a sua vida é uma promessa de felicidade, aqui e agora. Esta promessa baseia-se no facto de que o Deus dos primeiros cristãos é Aquele que reconhece cada uma e cada um, como uma pessoa preciosa aos seus olhos, incondicionalmente. É esta a base inalienável da espiritualidade cristã.

Esta inserção na vida cristã repousa num dom incondicional e faz com que o crente aceda à liberdade. Liberdade perante si mesmo, perante os outros, perante o mundo, tal é a característica essencial desta espiritualidade. E isso precisa de ser sublinhado. Esta liberdade é vivida na – uma fé declinada de diferentes maneiras. A fé de que estamos aqui a falar não consiste em acreditar em coisas intelectualmente inadmissíveis. É um caminho de vida, uma aventura que precisa de ser constantemente recomeçada, que oscila entre tristeza e alegria, entre conhecimento e dúvida.

Não é simplesmente uma disposição interior, um estado de consciência. É também um envolvimento na profanidade do mundo, é uma resposta incarnada e concreta à exigência de amor e de justiça. Caracteriza-se por uma exigência de sobriedade, de atenção aos outros.

A fé também é feita de diálogo, diálogo com Deus. Este diálogo materializa-se na oração, mas uma oração da qual Jesus continua a ser o modelo espiritual, uma oração que encontra a sua expressão paradigmática no Pai Nosso. A fé não só se cristaliza na relação com Deus ou com o próximo, como também se concretiza na relação com o mundo e com a natureza – natureza que é simultaneamente o espaço da criação de Deus, uma criação “boa”, que deve ser protegida porque é a área de desastres imprevisíveis. Pensemos, por exemplo, na pandemia Covid 19.

Um problema fundamental de toda a espiritualidade consiste, aliás, na relação com o tempo.  Como é que me relaciono com o meu passado? Trata-se de um passado culpabilizante ou de um passado precioso com o qual estou reconciliado? Qual é a minha expectativa e esperança para o futuro? Avanço para o julgamento ou para a vida? O que é que está em jogo no presente e como posso habitá-lo?

À questão do tempo está ligada a da morte, da minha própria morte. O que é a morte? Será um evento natural ou um evento escandaloso, ou ambos? Como é que Jesus abordou esta questão para si mesmo e para os outros? O que é que posso esperar?

Finalmente, os primeiros cristãos ao desejarem fortalecer a sua vida espiritual foram confrontados ao problema da memória. Não foi neles próprios que encontraram todos os recursos que permitem enfrentar os imprevistos da existência humana, mas sim numa palavra que adveio nas suas vidas. Esta palavra – como em todas as grandes civilizações – condensa-se numa narrativa fundadora que dá sentido, que cria significado para quem a ouve. Estamos a pensar na Ilíada e na Odisseia para os gregos, na Eneida para os romanos, no Êxodo para os judeus e no Evangelho para os cristãos. Esta narrativa substantifica-se não só na palavra que nos foi dirigida, mas também em ritos. Pensamos aqui no Batismo e na Última Ceia, que são marcadores de toda a vida espiritual cristã.

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