Habitar a Criação

Permitam-me que comece doxologicamente esta minha exposição, lendo um trecho poético, velho de uns 2500 anos. É que esta tónica doxológica do início abrir-nos-á o caminho para a interrogação agónica com que somos confrontados. Serenamente confrontados. Esse trecho poético pertence ao saltério de Israel, e é hoje recitado também pelos cristãos. Exprime-se assim o poeta de há 2500 anos:

«Aleluia!

Louvai a Deus no céu, louvai-o nas alturas!

Louvai-o, todos os anjos,

louvai-o, todas as suas hostes! Louvai-o, sol e lua,

louvai-o, todas as estrelas luzentes!

Louvai-o, os mais altos céus,

e águas acima dos céus!

Louvem o nome de Deus,

pois ele mandou e foram criados.

Fixou-os eternamente, para sempre,

ordenou uma lei que eles não transgredirão.

 

Louvai a Deus na terra,

vós monstros marinhos e todos os abismos,

raio e granizo, neve e bruma,

e furacão cumpridor do seu mandamento!

Vós montes e todas as colinas,

árvores frutíferas e todos os cedros!

Vós, feras selvagens e o gado todo

réptil e pássaro que voa!

 

Vós, reis da terra e todos os povos,

vós príncipes, e juízes todos da terra!

Vós, jovens, e também as donzelas,

vós, velhos, e todas as crianças!

Louvem, o nome de Deus,

é o único nome sublime,

sua majestade vai além da terra e do céu,

e ele reforça o vigor do seu povo!

Louvor de todos os seus fiéis, dos filhos de Israel,

seu povo íntimo! Aleluia!

(Salmo 148)

Eis aí, pois, em registo doxológico, a glorificação do misterioso nome de Deus, criador e preservador do mundo. Glorificar a majestade divina é o objectivo final que une todo o universo na comunhão do serviço. Uma tal visão tremenda de Deus e do mundo exprime-a o poeta na magnificente estrutura arquitectural do salmo: começando com os céus, a chamada ao louvor de Deus desce à terra, dirige-se em seguida à humanidade e termina com a comunidade do povo de Deus, no meio da qual se torna visível a salvação cósmica cantada doxologicamente.

Ora bem: a nossa grande interrogação desta noite consistirá em inscrevermos nesse registo do optimismo doxológico um outro registo, este de inquietação escatológica, que pergunta brutalmente se não estaremos a caminhar para uma hora —que poderá já não vir muito longe — em que o louvor da divindade deixará de ser possível pela simples e dramática razão de já não haver nem céus, nem terra, nem criaturas. Por outras palavras: fazermos hoje nossa a doxologia cósmica do poeta-salmista implicará inelutavelmente a tomada de consciência da ameaça de uma possível escatologia de tragédia. “É que hoje, parece que, mais do que nunca, doxologia e escatologia estão ligadas numa inescapabilidade total. Há hoje em dia motivos para recearmos que a natureza, agredida como está a ser sobretudo nas modernas sociedades industriais, decaia a um tal ponto que a humanidade venha um dia a juntar-se aos dinossauros como uma forma extinta de vida. A auto-ameaça da humanidade pelos meios atómicos, químicos e biológicos de destruição massiva, bem como a crescente ameaça de destruição da natureza, se tornaram numa só ameaça total. Uma só ameaça total, com tempo marcado de realização. É assim que, nesta perspectiva sombria — se é que queremos deixar de ser artífices do nada — o futuro deixa de poder ser visto meramente como algo que vem com o tempo, para exigir ser vivido justamente como futuro inescapavelmente a ser criado hoje.

Hoje. Acentua-se hoje, cada vez mais, por toda a parte, o que podemos chamar de circulo vicioso de morte: ele vai da sociedade humana ao ambiente natural, com o envenenamento das águas, a destruição de muitas espécies animais, a morte das árvores, e repercute-se em seguida nos seres humanos. A exaustão das forças vivas da natureza e a aniquilação em massa da vida humana entre os povos famintos do Terceiro Mundo, proclamam em estilo de certeza fatal um ponto na história humana em que sem mudança não haverá futuro. Como iremos, amanhã, poder habitar a criação? Sem dúvida que em todos os tempos houve catástrofes ambientais.

Mas, enquanto em tempos passados, depois das catástrofes, a natureza podia restaurar a vida e a multiplicidade dos seres vivos, hoje, pelo contrário, espécies inteiras de animais e plantas estão morrendo, e ninguém poderá trazê-los de novo à vida. É uma catástrofe definitiva, sem retorno.

E tudo isto não pode ser equacionado como se as graves questões da crise ecológica tivessem apenas que ver com o que se passa em outros sítios — ou na Amazónia, ou na Floresta Negra, ou nos oceanos com o derramamento do crude, ou em Chernobyl. Estamos aqui confrontados com uma crise que implica o todo da nossa civilização científica e tecnológica. Os espíritos que nos parecem os mais lúcidos, estão hoje a chamar a nossa atenção para o fim mortal para que corre o projecto da sociedade industrial. E dizem-nos que, a não ser que haja uma mudança radical nas orientações da nossa sociedade; a não ser que consigamos encontrar um estilo alternativo de vida para tratar com a natureza e connosco próprios; a não ser assim, esta crise terminará em catástrofe de dimensões incalculáveis, nomeadamente na morte ecológica da terra e dos seus habitantes.

Já disse que, hoje, a doxologia do Deus criador se sente interpelada por uma possível escatologia de drama. Ora bem, formulo agora a questão que poderá ser para nós, esta noite, uma questão central: que sentido poderá ter confessar a criação, como artigo de fé em Deus, neste clima de mistura inevitável entre o doxológico e o escatológico? Que pertinência proclamar, na fé, que somos chamados a habitar a criação, isso perante o desafio da crise ecológica? Que contornos os do discurso cristão, que não é o discurso do gnosticismo com o seu deus demiurgo, por intermédio do qual o mundo é criado mas não é salvo, mas é o discurso da coincidência entre o Deus Criador e o Deus salvador, um só e único Deus? Por outras palavras: se já disse que, na minha perspectiva, a doxologia do Deus criador é hoje atravessada de uma ponta à outra pela escatologia ameaçadora do fim, acrescentaria agora que para os cristãos, parece-me, um discurso protológico, isto é, sobre as origens, tornou-se enfaticamente inseparável de uma reflexão soteriológica, isto é, de salvação. Em outros termos: uma doutrina cristã definir-se-á em função da prioridade lógica da doutrina da salvação.

Eis aí, pois: a protologia, isto é, um discurso sobre as origens, a implicar a questão da soteriologia, isto é, a questão da salvação: das mulheres e dos homens, bem como do mundo desses homens e mulheres. E nisto, diante destas questões que me parecem fulcrais para uma doutrina ecológica da criação, formularia deste modo o que me parece central: uma teologia cristã da criação, consciente dos seus limites e do que hoje está em jogo, será uma teologia que não tem como objectivo proclamar um saber sobre a origem do real, mas sim criar um futuro justo onde seja possível inscrever o louvor de Deus e, concomitantemente, o serviço das mulheres e dos homens.

O nosso mundo, este mundo que estamos em processo de habitar ou, tragicamente de desabitar, não é um mundo caído do céu do nada, nem um ponto zero sobre o qual poderia exercer-se indiferentemente os nossos poderes, mas é, como criação, justamente como criação, natureza e história. Natureza e história na sua própria textura.

Assim, se para a fé e para teologia, a questão da origem é uma questão central, nem a fé nem a teologia compreendem a origem como um ponto de partida situado «numa primeira manhã da história». Elas compreendem a origem como questão presente e actual: a partir de quê habita. o homem o espaço que é o seu? A partir de quê dá o homem tal ou tal figura ao mundo?

Tendo em atenção um tal pano de fundo, algumas coisas me parece imporem-se note a uma e uma doutrina crista da criação.

  1. A recusa, em perspectiva bíblica, de uma dissociação entre o homem e a natureza.

Quando comparamos a nossa civilização com as culturas pré-modernas — culturas que de nenhum modo podemos considerar como «primitivas» ou «subdesenvolvidas» — uma diferença ressalta: a diferença entre crescimento e equilíbrio. A nossa civilização industrial surge-nos como civilização de crescimento, enquanto as culturas pré-modernas o eram sobretudo de equilíbrio. De facto funcionavam como complexos sistemas de equilíbrio que regulavam as relações dos seres humanos entre si, deles com a natureza e com os deuses. Somente as modernas civilizações ocidentais nos surgem unidi­mensionalmente programadas para o crescimento, expansão e conquista. A conquista do poder, o lucro e o desenvolvimento, transformam-se em valores básicos operantes na sociedade e reguladores de tudo (Vd. Jürgen Moltmann, Creating a Just Future, pp. 53 ss.).

Por que aconteceu tal?

A tradição judaico-cristã tem sido frequentemente responsabilizada pelo poder e domínio exercidos pelo homem sobre a natureza. Tem-se dito que foi esta tradição que decretou competir ao homem dominar a terra, ao mesmo tempo que desnudava o mundo da natureza dos seus demónios e dos seus deuses, transformando-o no mundo dessacralizado dos seres humanos, tudo fortemente penetrado por um antropocentrismo total.

Sem dúvida que uma certa leitura cristã do mito bíblico das origens tem nutrido uma certa perspectiva antropocêntrica de domínio sobre a natureza, pois é nesse sentido que se tem interpretado o «sêde fecundos, enchei a terra e dominai-a» da narrativa do Génesis. Sem dúvida que a exegese que mais não tem visto que a perspectiva antropocêntrica do domínio no texto bíblico sobre as origens, é uma exegese que tem deixado as suas marcas mais ou menos profundas na nossa doutrina cristã da criação. Submeter a terra, dominar a criação até ao ponto de destruí-la tem sido o traço característico das relações entre o homem e a criação na época histórica em que vivemos. Uma tal atitude do homem em relação à criação pressupõe uma separação, uma dissociação entre o homem e a natureza, podendo-se evocar nisto, como símbolo, o nome e a pessoa de René Descartes, ele que sublinhou a vocação do homem como a de ser «dono e senhor da natureza».

Mas uma tal exegese é extremamente contestável. De facto, o «dominai a terra» do livro do Génesis significa, correctamente lido, «cuidai da terra» tal como o pastor deve fazer em relação ao seu rebanho. Tem sido uma certa mentalidade moderna que tem orientado o texto tendencialmente no sentido de Descartes, o de se ser «dono e possuidor da natureza». Em boa exegese, é preciso dizer: a submissão da terra ao homem, no mito bíblico das origens, não implica de modo nenhum um acto arbitrário e opressivo, mas equivale a uma tomada de posse. Para medirmos um pouco o alcance de tais palavras, convém evocar o contexto histórico, social e cultural em que elas surgiram. É o século 6 A. C. e Israel está no exílio da Babilónia. Havia perdido o que constituía o essencial da sua existência: a sua terra, o seu rei e o seu templo. Sob a égide do império babilónico, vê-se confrontado com a civilização brilhante da capital babilónica, os seus santuários, os seus ritos, a sua ciência. Génesis 1 é uma resposta às preten­sões dos sacerdotes, dos sábios e dos militares da Babilónia em controlarem a marcha do universo e em disporem dos povos. Mas este capítulo foi escrito a anos luz do mundo que nós conhecemos hoje, numa altura em que o saber e a técnica estavam ainda em processo de balbuceio. Na sua bênção, Deus promete às suas criaturas que elas viverão, tomarão posse da terra, impor-se-ão aos animais que habitam os mares, o céu e a terra, coisa não evidente em si, num tempo em que a natureza agredia o homem de todos os modos, descobrindo-se o homem como ser de extrema vulnerabilidade face às agressões ambientais, aos animais selvagens, aos cataclismos diversos que sobre ele se abatiam. Ora é preciso dizer que Génesis 1 (1:28) aparece como uma promessa de vida, como uma palavra libertadora, como um convite a acolher a criação divina. É assim que o homem e a mulher chamados a habitar a terra, foram feitos à imagem de Deus (Génesis 1:26,27). Eles devem, pois, reflectir uma autoridade que são chamados a receber, como um dom, e o seu comportamento diante da criação deve manifestar a atitude do Criador diante do universo: e essa atitude, di-lo o texto, é a atitude da solicitude e do contentamento. O mito bíblico das origens abre-nos, pois perspectivas ecológicas inauditas.

  1.  Penso que se podemos responsabilizar a tradição judaico-cristã pela crise ecológica actual, será antes o campo teológico da imagem de Deus, forjada na civilização ocidental, que deveremos interrogar.

Em recente conferência, o teólogo J. Moltmann (1) chama a atenção para o facto do que desde a Renascença, no Ocidente, Deus começou a ser designado cada vez mais como o «Todo-Poderoso». A omnipotência foi assim considerada como a primeira característica de Deus, o Senhor absoluto de tudo e de todos. À medida que a omnipotência de Deus ia sendo sublinhada, Deus ia sendo atirado cada vez mais para a esfera da transcendência, e o mundo encerrado em uma cada vez mais pura imanência. Passou-se assim a pensar cada vez mais Deus em si mesmo, prisioneiro de uma transcendência solitária, sem o mundo; por seu lado, o mundo começou a ser pensado cada vez mais sem Deus, encerrado numa imanência desabitada de mistério. Em palavras de Max Weber, o mundo perdeu o seu divino mistério como criação, e pôde assim ser cientificamente «desencantado». É assim que no princípio do período moderno, Francis Bacon louva as ciências naturais do seu tempo com as palavras «Conhecimento é poder», e através do poder sobre a natureza, a imagem de Deus nos seres humanos é restaurada.

Ora aqui, se uma mudança radical se impõe, como creio impor-se, e se a nossa crise actual tem componentes políticas e culturais, como creio ter, e portanto, como sempre acontece nesses casos, dimensões espirituais e teológicas — sendo isso assim, penso ser extremamente salutar para a nossa reflexão cristã e teológica abordarmos o problema da imagem de Deus, a imagem de Deus com que nos temos orientado. Nesse sentido há toda uma tradição sapiencial na mensagem bíblica, tradição que tem sido reprimida por toda uma imagem moderna de Deus, que, é preciso dizê-lo, tem sido uma imagem absolutista e masculina. Uma reflexão no sentido de redescobrirmos o que há de feminino nesse mistério a que chamamos Deus, encaminhar-nos-ia aqui, penso, para a redescoberta do Deus trino. Libertarmos Deus da sua transcendência e a natureza da sua imanência, implicará para nós, em reflexão cristã, dizermos que Deus o Pai criou o mundo através da sua Sabedoria, isto é, através do Filho/Filha (Provi 8), no Espírito Santo. Tudo, pois, existe a partir de Deus e «em Deus».

  1. E chego aqui ao meu ponto de conclusão. Esta nossa civilização, marcada pelo projecto tecnológico e científico, atingiu hoje não somente os «limites do crescimento», mas tam­bém os limites das suas próprias condições de vida no cosmos. Se esses limites forem irreparavelmente destruídos, então os habitantes da terra morrerão com o eco-sistema terráqueo, tal como ele é conhecido.

Encontramo-nos, assim, hoje, num ponto de viragem. E, como também lembra Moltmann «não se trata de se proceder a uma integração da natureza na história humana do progresso, mas, inversamente, trata-se inadiavelmente da integração da história humana do progresso nos ritmos e nos ciclos do eco-sistema. Só isso pode garantir a sobrevivência». Num texto magnífico, o seu cap. 8 da epistola aos Romanos, o apóstolo Paulo reinterpreta a narrativa da criação (Rom 8: 19-23) à luz da fé no mundo novo iniciado por Jesus Cristo na potência da sua ressurreição. E o apóstolo dirige o nosso olhar, e exorta-nos a apurar os nossos ouvidos, para um universo cheio de sons inaudíveis, a que ele chama os gemidos de uma criação reduzida à escravatura e aspirando à libertação. Pela dominação violenta que exerce sobre ela, o homem vota a criação ao não-sentido. Contudo a criação espera, e espera através da mulher e do homem, este homem e esta mulher prometidos à gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

Se nós somos crentes, então a esperança da criação não pode deixar de nos questionar. Porque a nossa própria esperança, a que temos em Jesus Cristo, supõe sermos solidários da esperança da criação, isto é, compadecidos com os seus sofrimentos.

Muito concretamente, isso significa que a nossa esperança passa por todos os gestos quotidianos, por todo o nosso empenhamento, por todos os nossos protestos que podem contribuir para diminuir os sofrimentos da criação.

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(1) Jürgen Moltmann, op. cit., pp 548,

[1] Almeida, D. (1990). Habitar a Criação. Reflexão, 69, pp.13-22. Centro de Reflexão Cristã.Lisboa.

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