O paradigma protestante da Reforma e a reforma do paradigma protestante

A questão da identidade protestante reformada, tal como a da identidade cristã, de maneira geral, é o tema aqui desenvolvido por A. J. Dimas Almeida*. Para o autor, os cristãos de hoje, privados do aconchego da “cristandade”, não podem deixar de se interrogar sobre o que é a identidade cristã na modernidade tardia em que nos encontramos. Como nos situarmos quando há um afastamento percetível entre os interesses maiores da nossa sociedade e o projeto das igrejas? A sua proposta é revisitarmos o paradigma da Reforma do século XVI, a partir do mundo real, tardomoderno, em que nos encontramos. Reabrir o passado e libertar a sua carga de Futuro!

 

 

Monumento Internacional da Reforma (Muro da Reforma) em Genebra

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O nosso continente, esta nossa Europa, sublinha-o com rigor Edgar Morin [1], não se tornou uma noção geográfica senão por se ter tornado uma noção histórica. Perde assim, por um lado, qualidades de estabilidade, e adquire, por outro, qualidades dinâmicas de génese e de transformação. Forma-se a ela mesma do caos instaurado pelos bárbaros, porque caos genesíaco criador do espaço de onde em mistura fecundante surgirão “os germes e pólenes da cultura mediterrânica, grega e latina, e porque uma religião vinda do Oriente, ela mesma portadora de genes gregos e latinos associados aos seus genes hebraicos, veio civilizar o caos.” (Ibidem).

A Europa é, assim, uma história. Uma história resultante de uma interacção de três elementos: a Grécia, Roma, e a fé cristã, No dizer de G. Tourn, “A Grécia é o conflito violento e apaixonado das identidades, um conflito de irmãos: Roma é o equilíbrio dos interesses particulares, mas nos dois casos a unidade realiza-se no domínio do ideal: pela religião e pela cultura. O que unifica são os deuses, e no que respeita à realidade imperial o César divinizado” [2]

Mas a Europa não foi somente grega e latina. Ela tornou-se cristã. Ora bem: que papel desempenhou na sua história — história simultaneamente marcada pelo unitário e pelo conflitual — o que chamamos a religião cristã? Questão incontornável e complexa ao tratar-se desta velha Europa, de que a consciência histórica se foi formando inseparavelmente da crise. Ainda não há mais do que três anos. em Lisboa, Paul Ricoeur, falando sobre tal tema, chamava a atenção para a complexidade da herança recebida do passado. Um passado tecido pelo cruzamento de tradições fortes e vincadamente heterogéneas, como o são as do antigo Israel e as do cristianismo primitivo, entretecidas bem cedo primeiro com a cultura grega, em seguida com a latina. De onde uma espécie de mestiçagem em migração e mudança cultural, prosseguindo de crise em crise através da Idade Média, do Renascimento, da Reforma, da época das Luzes, de um romantismo filosófico, literário e político, etc. E enfatizava Ricoeur: “A cultura europeia tomada no seu conjunto é talvez à única a ter assumido a tarefa considerável de conjugar, de modo tão constante, convicções e crítica. O cristianismo, desse modo, diferentemente do Islão, teve sempre de fazer arranjos, de transgredir com o seu adversário racionalista e interiorizar a crítica em auto-crítica. Em certo sentido, a crise não é um acidente contingente, menos ainda uma doença moderna: ela é constitutiva da consciência europeia. A heterogeneidade das tradições fundadoras e a discordância entre convicções e crítica levam-me a pronunciar à palavra fragilidade” [3].

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Numa Europa cultural que se veio construindo policentricamente, a realidade religiosa é a que se nos apresenta historicamente como “fé cristã”. Papel fundamental o seu, nesse espaço europeu marcado pela filosofia, pelas ciências, pelas ideias políticas, por poetas e romancistas, por músicos e artistas. A partir do Renascimento tomam forma e propagam-se, num espaço de experiência e num horizonte de espera, as grandes ondas que são as do humanismo e as da Reforma protestante.  Nesta Europa multissecular — da qual Karl Jaspers dizia ter sido ela quem forneceu ao Mundo a ideia de História [4] — a realidade religiosa marcante é indubitavelmente a que toma a forma de fé cristã, confessionalmente expressa quer como catolicismo romano, quer como ortodoxia, quer como protestantismo. Se Atenas e Roma forneceram à Europa as suas formas e as suas linguagens culturais, Jerusalém — isto é, a tradição judeo-cristã — deu-lhe a sua alma. Se se pode então falar de uma unidade europeia, o cristianismo e a Igreja desempenharam um papel determinante em tal unidade. Se a Europa foi uma, ela foi-o graças a essa síntese, contestável ou não, entre a cultura clássica e a fé cristã. Mas, paradoxalmente, a fé cristã foi também, e não poucas vezes, um elemento de crise, o pôr em questão os valores, constituindo-se desse modo uma ameaça para a própria unidade.

É que a cristandade está longe de ter sido o conjunto compacto e homogéneo que nos é proposto pelas obras de apologética. “Mesmo quando as catedrais eram brancas, os conflitos dilaceravam a Igreja e as consciências, e não somente no domínio político, mas também no religioso. Será preciso evocar as polémicas cristológicas, os concílios transformados em algazarras tonitruantes, as excomunhões sucedendo-se e entrecruzando-se entre os grupos e facções, a repressão impiedosa das inquisições, as guerras de religião?” [5]

Há, sem dúvida, uma violência ideológica da história europeia que atravessa a cristandade, isto é, esses tempos gloriosos em que a Igreja não tinha exterior porque coincidente com a sociedade. Tudo era baptizado com a água lustral do que se chamava a fé cristã: os hospitais eram cristãos, as escolas eram cristãs, as instituições eram cristãs. Tempos, sem dúvida. de um insinuante equívoco, geradores de cruzadas e de catedrais. A ortodoxia, elemento constitutivo da alma europeia, exprimia-se no seu desejo de fazer corresponder adequadamente em nome de Deus atitudes e pensamentos, pessoais e comunitários, às verdades essenciais do que era tido como Revelação. Tudo o que se configurasse como volta às fontes religiosas e pudesse assim opor o texto bíblico à doutrina da Igreja, era visto como heterodoxia perigosa, como heresia à denunciar, e o herege a submeter ao veredicto da excomunhão. Quando não a erradicar fisicamente.

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É, com efeito, numa história ponteada por crises — as crises da consciência europeia na busca de identidade, na imposição de uma ortodoxia, nos contornos de uma violência ideológica, na conflitualidade permanente das heranças grega, romana e judaico-cristã — que se inscreve a Reforma protestante do século XVI. A Reforma que, geneticamente plural, introduzirá o pluralismo religioso no seio do cristianismo ocidental: na tensão que se instaura, quebra-se definitivamente a unidade religiosa da Cristandade-das-Cruzadas-e-das-Catedrais. Acontecimento excepcional o da Reforma, com dimensões e consequências que marcarão indelevelmente toda a história subsequente da Europa. Acontecimento único ou simples elo nessa cadeia de crises, de debates, de sobressaltos da consciência europeia? Seja como for, único ou não, do evento da Reforma, com toda à sua carga explosiva, vai nascer uma nova Europa, a protestante, assinalada por um conflito de interpretações, uma Europa que vai tomar forma paralelamente à dos monges, à dos estudantes, à dos comerciantes, mas muito mais complexa e extensa do que estas. 

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Em não mais do que uma dúzia de anos. o que havia começado como uma disputa entre teólogos, iniciada por um monge de nome Martinho Lutero, toma proporções tais que provoca o aparecimento de uma nova geografia religiosa. É um mundo que estremece, da Idade Média aos Tempos Modernos. 

Se um nome começa frequentemente como apelido ou insulto, passa depois, não poucas vezes, a ser estandarte e confissão. Aconteceu assim com o nome de “cristão”, que começa por ser pejorativo na história das origens do cristianismo (cf. Act 11:26). Mas não aconteceu também o mesmo com “republicanos” ou “impressionistas”, “comunistas” ou “cubistas” [6] 

Os protestantes receberam o seu nome na altura da segunda dieta de Espira (Abril de 1529), onde cinco príncipes e catorze cidades da Alta Alemanha se uniram para preservarem o direito de manter a Reforma nos seus territórios, assim como defenderem o direito de a difundirem, contra a interdição decretada pelo imperador Carlos V. Em texto historicamente notável, por eles subscrito, surge a palavra protestar utilizada no seu sentido de afirmar: “Protestamos, diante de Deus, nosso único criador, conservador, redentor e salvador, e que um dia será nosso juiz, assim como diante de todos os homens e de todas as criaturas, que não consentimos o decreto proposto, e de nenhum modo a ele aderimos, no que a nós e aos nossos respeita, em todas as coisas que são contrárias a Deus, à sua santa Palavra, à nossa boa consciência, à salvação das nossas almas e ao último decreto de Espira.” 

Doze anos depois da divulgação das 95 teses de Martinho Lutero contra as indulgências (31 de Outubro de 1517), constata-se nesta declaração da segunda dieta de Espira que as cartas estão claramente lançadas: a atitude confessante bem como a postura protestatória, o recurso directo a Deus assim como a constituição colegial de uma união, a obediência à autoridade das Santas Escrituras bem como o apelo à consciência — tudo isso aparece nessa declaração historicamente determinante. Um eco das palavras proferidas oito anos antes (em 18 de Abril de 1521)  por Lutero na dieta de Vórmia, presidida por Carlos V: “(…) Não creio nem na infalibilidade do papa nem na dos concílios, pois manifesto é que se têm manifestamente enganado e caído em contradições. Sinto-me ligado pelos textos bíblicos por mim citados, e a minha consciência está cativa da Palavra de Deus. Não posso nem quero revogar nada, pois não é nem seguro nem honesto agir contra a nossa própria consciência. Que Deus me ajude.” Ao que o juiz eclesiástico retorquiu: “Abandona a tua consciência, irmão Martinho, a única coisa que não é perigosa é a submissão à autoridade estabelecida. ” [7]

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De monge obscuro, Martinho Lutero vai tornar-se uma figura profética que marcará toda uma época e influenciará decisivamente a espantosa viragem histórica de então. Dele não se pode falar apenas biograficamente ou psicologicamente, esgotando-se nisso a nossa interpretação do papel por ele desempenhado, decisivo para o fim de uma era e o começo de uma outra. Importa antes ser interpretado e compreendido em termos históricos e teológicos, a partir do centro do seu trabalho. A pergunta surge, pois, na sua inevitabilidade: qual é esse centro?

Há, hoje em dia, um amplo consenso tanto entre protestantes como entre católicos no reconhecimento de que o centro da teologia de Lutero é o princípio da justificação do pecador. E lendo os textos paulinos, particularmente a Epístola aos Romanos, que ele é conduzido a uma tal descoberta. Toda a sua vida vai passar, de uma ponta à outra, por uma total reorientação. Lutero compreende que a justiça de Deus de que o Evangelho fala, não é a do Deus que julga, mas a do Deus que justifica, que aceita, que acolhe o homem tal como ele é, com e apesar do seu pecado. Ser justo não é, pois, acumular confissões, penitências e boas obras. mas sim submeter-se ao veredicto da justiça de Deus. E é pela fé em Jesus Cristo, unido a Cristo, que o homem poderá viver de cabeça erguida. Nesse sentido, luterana, profundamente luterana, é a afirmação de Soren Kierkegaard quando proclama que “o contrário do pecado não é a virtude, mas sim a fé”. Do Deus juiz. condenando sem remissão nem piedade, Lutero chega ao Deus que é amor e que em Jesus Cristo se oferece totalmente ao homem. Este não tem senão de responder a esse amor. Não se trata, pois, para ele, de empreender — com o fito de conquistar a santidade — uma impossível ascensão, mas sim de receber a boa nova da justificação dos pecadores, pela graça, por meio da fé. Lutero descobre, e vive existencialmente, o princípio de que o pecado está lá, sobretudo lá, quando o homem se esforça para ser piedoso. A justificação do homem também não pode provir da lei (mesmo quando chamada “lei de Deus”), em virtude de ela ser impotente para dar a vida. A esse respeito, assim se exprime Lutero: “Enquanto meditava, dia e noite, e examinava o encadeamento das palavras “A justiça de Deus” é revelada no Evangelho (tal como está escrito “O justo viverá pela fé” epíst. aos Romanos 1:17), comecei a compreender que a justiça de Deus significa aqui a justiça que Deus dá e pela qual o justo vive, se tem a fé. O sentido da frase é, pois, este: o Evangelho revela-nos a justiça de Deus, mas à justiça passiva, pela qual Deus, na sua misericórdia, nos justifica por meio da fé (…). Imediatamente senti que renascia e que entrava, por portas largamente abertas, no próprio Paraíso”.  Descoberta desconcertante, de que as consequências serão incalculáveis. Sola gratia, sola fide (só a graça, só a fé) são as duas colunas da vida nova, a vida de um homem libertado para servir. A essa nova vida Lutero vai descrevê-la, um pouco mais tarde, num admirável tratado (‘Da liberdade do cristão”), da forma lapidar seguinte: “O cristão é o mais livre de todos os senhores, e não está sujeito a ninguém; o cristão é o mais submisso de todos os servos e está sujeito a todos” .

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À partir daí, o grito da Reforma, tal como incarnado por Lutero e vivido pelos seus epígonos, defende enfaticamente que é da própria essência do cristianismo que fé, igreja e liberdade estejam ligadas entre si. Pois que é a igreja ou a liberdade sem a fé? Sem esta, responde Lutero, a igreja não é mais ao que uma casca vazia e a liberdade um vagabundar errante. Que é a fé sem a igreja? Um intimismo que se esgota num individualismo. E a fé sem liberdade? Não passa de uma tirania e a igreja de uma prisão. [8]

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Entre as causas da Reforma protestante está presente, como amplo pano de fundo, o que poderemos designar, em termos genéricos, a crise do tardo-medievalismo vivido pela Igreja católica, quando Lutero torna públicas, em 1517, as suas famosas teses contra as indulgências, quando a prova de força começa a jogar-se entre ele e o papado, quando a bula da excomunhão o atinge em Janeiro de 1521, assistindo-se a partir de então a uma espantosa disseminação das ideias reformadoras que ganham rapidamente quase à Europa inteira, provocando um pouco por toda a parte os maiores abalos — quando tudo isso acontece, não se pode dizer que estamos perante algo improvisado. 

Não há dúvida de que a realidade é múltipla e de que circunstâncias económicas e políticas desempenharam papéis determinantes. Podemos, contudo, dizer que a Reforma nasceu da Idade Média, assim como o fruto maduro cai da árvore de que provém. A Reforma, que foi o ponto de partida de uma complexa história, foi em si mesma também o lugar de cumprimento de uma história já longa e carregada. 

Até 1521. Lutero alimentou a esperança de que a reforma indispensável do cristianismo ocidental poderia realizar-se no interior do catolicismo e sob a autoridade do papa. É só depois do processo da exclusão imperial, que o excomungado de 1520 toma consciência de que um ponto de não retorno tinha sido atingido, e que dali em diante se iria impor a formação e organização das comunidades dos adeptos da Reforma, que começavam a agrupar-se um pouco por toda a parte. Contra a vontade do próprio Lutero — ele que não tinha tido outro propósito que não fosse o de permanecer dentro da Igreja onde nascera — o movimento da Reforma prolongava-se mais e mais fora da Igreja de Roma. Não mais do que uma geração foi necessária para a implantação da Reforma nas principais cidades da Europa ocidental, a Inglaterra e a Escócia incluídas.

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É óbvio que o protestantismo se exprimiu, histórica e teologicamente, como ruptura. Isso não obstante a vocação vivida pelos reformadores ter sido, essencialmente, a de expurgar o Evangelho das tradições humanas que o haviam desfigurado: que o Evangelho, libertado do peso de uma tradição paralisante, e a Igreja da desfiguração de um cativeiro secular, pudessem, na força do Espírito, abrir uma brecha na muralha do desespero. Era esse, em substância, o teor da carta que, em 1543, João Calvino dirigiu a Carlos V.  Facilmente nos apercebemos de que há sem dúvida, em tudo isso, um enorme risco que se corre. Mas não exactamente o risco da heresia. Claramente, os textos confessionais da Reforma declaram, por um lado, rejeitar as mesmas heresias conhecidas pela Igreja antiga, e, por outro lado, fazer suas as antigas confissões de fé (credo dos Apóstolos, credo de Niceia, credo de Atanásio): também não o risco quer do subjectivismo quer do individualismo: a alteridade do texto escriturístico como referência inescapável para o discurso da fé, é constantemente sublinhado, e vai funcionar como antídoto. [9]

Não é nesses campos que verdadeiramente o risco está. Está sim — e está-o em dramatismo existencial – quando se chega à questão que é crucial: vale mais obedecer a Deus do que aos homens, mesmo quando esses homens declaram ter por eles a autoridade de Deus? É este o cerne da questão, a questão inescapável quando se trata de compreender a Reforma. De facto, como compreender Lutero e Calvino, bem como os outros reformadores, se não chegamos a esse ponto quando a exigência da escolha surge como inevitável e o risco, o verdadeiro risco, é assim claramente assumido? Como compreendê-los se não chegarmos à questão de sempre, agonicamente já lá também, no registo que lhe é próprio, em Sócrates, quando diante dos seus juízes declara: “Homens de Atenas, tenho por vós consideração e afecto, mas antes quero obedecer ao deus do que a vós”

É esse o contexto dos histórica e teologicamente famosos “sós” estruturantes da mensagem da Reforma: a Deus a glória, pela graça: pela fé; pela Escritura. Note-se, contudo: o enfaticamente proferido não é sinónimo de afunilamento, mas expressivo de uma decisão; não arrasta consigo uma amputação, mas procura uma purificação, não pretende encerrar-nos numa ausência, mas assegurar-nos o dom de uma presença. [10]

Se à Reforma é, como diz André Dumas, “o grande ‘não’ que se opõe à justaposição de valores humanos e salvação dada pela graça e recebida pela fé”, é-o na medida em que esse “não” “é o combate sempre renovado contra ídolos imponentes e insinuantes. Mas a Reforma é também, e essencialmente, o “sim”. O “sim” que envolve esse “não” de um manto de alegria. O “só” não é senão a casca dura a envolver o conteúdo doce do “plenamente”. (…) Plenamente o perdão dos pecados, a conversão, a vida nova. Plenamente a comunhão com à promessa e a presença expressas nos sacramentos. Plenamente também a fruição da vida presente, dada pela bondade do Deus criador. Plenamente a Igreja, que é a companhia dos crentes a quem Deus nutre e a quem só Deus conhece. Plenamente a espera da vida futura” [11]

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A nossa existência hoje, católicos e protestantes, pertencentes a Igrejas diferentes, põe-se-nos, neste final do século XX em termos radicalmente diferentes dos do século XVI. A realidade que hoje vivemos é diferente da vivida no século de Lutero.

Lutero encarna, personifica — e personifica-o dramática e existencialmente — um fenómeno do fim da Idade Média. A sua questão essencial era a do caminho para se encontrar um Deus misericordioso. Em outras palavras, o cerne do drama luterano era o de saber se se era ou não “condenado”, e em que medida nos podíamos dizer “salvos”. Ora o nosso problema é hoje, sobretudo, o do “sentido” e o do “não sentido”, Lembra-o entre outros o protestante Paul Ricoeur, ao chamar a atenção para o facto de termos nisto uma questão pós-nietzschiana, que não se deixa mais exprimir unicamente em termos de culpabilidade, de pecado ou de redenção. [12]

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Além disso, a situação que é hoje a nossa caracteriza-se em grande medida, paradoxalmente, por uma des-simbolização do mundo, mas não, forçosamente, por uma evacuação do religioso. Este passa, hoje, por uma diáspora heurística, por uma atomização das procuras, pela confecção de um “cocktail individualista do sentido” (G. Lipovetsky). Tempo este de “desencantamento do mundo”, de sociedades marcadas por um nomadismo das opiniões e dos comportamentos e assinaladas por uma geometria variável ao nível dos valores, é também inescapavelmente tempo do sobressalto utópico e da opacidade ambígua. Nele surgem os lugares do sentido e das crenças, com as suas forças próprias e as suas perversões possíveis. 

Podemos constatar ainda nos nossos dias, penso, uma desarticulação mais ou menos generalizada entre o que podemos considerar o objectivo das Igrejas e a sociedade na qual elas tomam empiricamente forma. É essa a constatação dos que, dentro das Igrejas, católicos e protestantes, procuram pensar teologicamente a situação, tanto dos que chamam “modernidade” o resultado das transformações operadas, como dos que falam antes em termos de “pós-modemidade”. Por mim prefiro pensar em termos de “tardomodernidade”.  Há, de facto, uma constatação que se pode fazer: um afastamento perceptível entre os interesses maiores das nossas sociedades e o projecto das Igrejas. Ora é aqui que a tentação é forte de “restaurar pontos de referência credíveis, símbolos seguros, para que cada um possa identificar-se, e para que a feira de opiniões, de comportamentos. de crenças, cesse de produzir os seus efeitos de desestruturação, de incerteza, de indecisão. A tentação é, pois, forte de recusarmos este possível que hoje nos é dado: identificarmo-nos cristãmente sem que existam pontos sociais de referência credíveis” [13]. É-nos dado hoje viver em sociedades onde é claramente detectável o que poderíamos chamar um mercado-palco-religioso de modelos quase sempre dissonantes entre si, onde o esbatimento de uma referência à alteridade do totalmente Outro é praticamente total. 

A meus olhos, este contexto de dissolução de muitos dos valores tradicionais que no passado emprestavam segurança às Igrejas, se é, por um lado, contexto que torna difícil a configuração da identidade cristã, é, por outro lado, ocasião magnífica para o exercício da liberdade cristã. E nesse sentido será caso para perguntarmos se o cristianismo não proporá, mais do que uma identidade de contornos precisos, uma fé e uma esperança incondicional em Deus, na força do homem surpreendentemente livre conhecido por Jesus de Nazaré. É óbvio que num contexto marcado pela pluralidade dos modelos, nada disto é fácil. No dizer de Christian Duquoc “Eis um caminho que não é simples, pois ao dever alguém atribuir a si mesmo os seus próprios pontos de referência, dando-se assim uma identificação sem o apoio de referências instituídas, é um Deus imaginário que corre o risco de se tornar a imagem ou o modelo a partir dos quais se construirá a identidade. Com todos os riscos que ocorrem quando um Deus imaginário se torna o objecto do desejo ” [14]

Em tal pano de fundo, e no que ao diálogo ecuménico hoje concerne, não será desacertado reconhecermos que é o problema da autoridade que hoje parece mais marcar a separação entre catolicismo e protestantismo. Ao nível institucional assim se configura a situação. Devo dizer, contudo, que pessoalmente não me move um grande interesse pelo ecumenismo institucional. Esse meu não interesse deve-se sobretudo ao facto de crer na vocação visceralmente pluralista do cristianismo. Vejo uma tal vocação como congénita ao cristianismo. O que marca o cristianismo nas suas origens não é a uniformização, mas a diversidade ampla. O que gerou logo ab initio um fecundo e salutar conflito de interpretações.

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Inescapavelmente, a modernidade é o nosso lugar: a figura que toma hoje, para nós, o mundo real. Protestantismo e catolicismo aí estão. No que nos concerne a nós, protestantes, não é outro o lugar de onde nos é dado revisitarmos o paradigma da Reforma do século XVI. Nesse sentido há aqui o horizonte de uma fidelidade a não perder de vista. A fidelidade com que Lutero concebia a vocação cristã: viver e trabalhar na profanidade do mundo.  Assumirmos a modernidade faz parte da vocação protestante. Mas assumirmos a modernidade (e isto contra todos os sonhos nostálgicos e fantasmas afins no que respeita a tal ou tal realidade passada de situação triunfante que o cristianismo possa ter conhecido), assumirmos aqui a modernidade não significa identificarmo-nos com ela, coincidirmos com ela, sem recuo nem diferenciação. Não significa aceitarmos acriticamente o seu liberalismo ou o seu desejo incontido de progresso. Assumirmos não é justificarmos! 

Em tal contexto toma forma e importância a releitura do nosso passado, Uma leitura a que alguns já têm chamado leitura genealógica do passado, e que não consiste num mero acumular de conhecimentos históricos. O objectivo aqui não é nem “museológico” nem “historicista”. Tão pouco está em jogo uma veneração das coisas passadas. Reler a história como genealogia significa constituir memória. Uma memória é algo que irrompe no presente e de que não está ausente uma dimensão proléptica, vista como capacidade de integrarmos, libertas dos resíduos de um passado morto, as promessas de uma construção humana viva presentes numa tradição a reescrevermos e a integrarmos hoje no nosso horizonte de espera.  Há, pois, que dizer não a um presente sem memória: um tal presente, marcado pela amnésia, seria um presente sem relevo, onde todas as coisas se equivaleriam umas às outras, abrindo-se assim uma porta ao puro reino da adaptação, sem dimensão crítica. “Tradição e memória”, escreveu Paul Ricoeur, “são fenómenos solidários, mas a tradição parece ter mais afinidades com a memória-pura-repetição do que com a memória-lembrança-crítica. Uma tradição deve ser tratada como uma realidade viva. Uma tradição não permanece viva a não ser que seja sem cessar reinterpretada. E isto tanto no que concerne às tradições cristãs como às heranças greco-romanas, medievais, assim como às tradições recebidas da época das Luzes. (…) Os homens das épocas passadas eram portadores de expectativa, de sonho, de utopias que não foram satisfeitas e que importa libertar e incorporar às nossas próprias expectativas, para lhes dar um conteúdo e, se ouso dizer, um corpo. Numa palavra: é-nos necessário aceder a uma concepção aberta da tradição. Mais exactamente: é-nos necessário reabrir o passado e libertar a sua carga de futuro.”

António José Dimas Almeida

* Este texto, que nos foi entregue recentemente pelo autor para integrar o dossier  ” Recomeçar a Igreja?”, foi primeiramente comunicado no colóquio sobre Martinho Lutero, que teve lugar, em Lisboa, em 1996, no aniversário dos 450 anos da sua morte.

NOTAS:

[1] Morin, EDGAR: Penser | Europe, Paris, Gallimard, 1987, pp 69ss.

[2] Tourn, G.: “L’apport protestant à l’unité européenne” in Fol & Vie, nº6, déc. 1990, pp 3-33

[3] Ricoeur, PAUL : « La crise de la conscience historique et l’Europe », conferência pronunciada em Lisboa no Simpósio Internacional ‘Ética e o Futuro da Democracia’, 25-28 de Maio de 1994

[4] Jaspers, KARL : in « L’esprit européen, les Rencontres Internationales de Genève », 1946, Paris, Oreste Zuluk éditeur, 1947

[5] Tourn, G. ibidem

[6] Cf. Dumas, ANDRE: Protestants. pp 5ss.  

[7] Idem. Idem

[8] Idem, pp 11ss.

[9] Ibidem, p.28

[10] Idem, p.28

[11] Ibidem, p.17

[12] Ricoeur, PAUL : La critique et la conviction, pp.250ss.

[13] Duquoc, CHRISTIAN “L’identité chrétienne face à da dissolution des valeurs traditinonelles” in Bulletin du Centre Protestant d’Etudes, nº 4. sept 1990, p. 9.

[14] Idem, p.10

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