O Êxodo truncado da Bíblia dos escravos

O primeiro senador negro na história do estado da Georgia, nos EUA, eleito em Janeiro de 2021, é o pastor baptista Raphael Warnock, que desde 2005 dirige a Ebenezer Baptist Church, na cidade de Atlanta. A Vice-Presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, pertence à Terceira Igreja Baptista de San Francisco, na Califórnia, pastoreada por Amos Brown, hoje com 80 anos, um activista do movimento dos direitos civis do tempo de Martin Luther King.

Mas o senador Ted Cruz, o representante do Estado do Texas que no dia 6 de Janeiro de 2021 protagonizou uma das mais extremistas contestações da legitimidade do Presidente-eleito Joe Biden  – enquanto sulistas agressivos e armados invadiam o Capitólio com bandeiras da Confereração –  é também membro de uma igreja baptista, a Primeira Igreja Baptista de Houston.

A proposta de Ted Cruz, durante a sessão que devia ser a confirmação formal da vitória de Joe Biden, era que o Congresso aprovasse uma solução semelhante ao acordo de 1877. Ora o que se passou em 1877 foi gravíssimo para a causa dos negros americanos, recém-libertados da escravatura no final da guerra civil de 1861-65. Depois de um processo eleitoral conturbado e de um resultado duvidoso entre o candidato Republicano, Rutherford Hayes, e o Democrata, Samuel Tilden, com suspeitas de irregularidades, os Democratas aceitaram o chamado Compromisso de 1877, reconhecendo a vitória de Hayes a troco do cancelamento da Reconstrução do Sul, conduzida pelos vencedores do Norte, e da retirada das tropas federais que protegiam a população dos antigos escravos. O que veio a seguir foi a segregação imposta por lei e a época dos linchamentos e do Ku Klux Klan.

Mesmo os escravos negros evangelizados pelos seus proprietários nem sempre tinham acesso à noção de que o Deus da Aliança bíblica se apresenta dizendo  – “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egipto, da casa da servidão.”  (Êxodo 20: 2)  A Fisk University de Nashville, que descende de uma primeira escola para jovens negros, fundada logo após o fim da guerra civil, guarda no seu espólio um exemplar da “Bíblia dos Escravos”, editada na Inglaterra em 1807 com o título por extenso de  “Parts of the Holy Bible, selected for the use of the Negro Slaves, in the British West-India Islands”  –  “Partes seleccionadas da Bíblia Sagrada para uso dos escravos negros nas ilhas britânicas das Índias Ocidentais”.

Como explica Robert Jones, autor do livro White too Long – the Legacy of White Supremacy in American Christianity  –  já apresentado no jornal 7Margens –  esta edição resumida da Bíblia excluía cerca de 90 por cento do Antigo Testamento e metade do Novo:

“Por exemplo, o livro do Êxodo assim revisto, que toma o nome da libertação dos Israelitas da servidão no Egipto, contém a história da sua escravatura e de Moisés recebendo os Dez Mandamentos, mas omite a parte dos Israelitas encontrarem a sua libertação.”  (op.cit., págs. 77-78)

Como conta também Robert Jones, na introdução do seu trabalho, a criação da Convenção Baptista do Sul (Southern Baptist Convention) surge em 1845 como o primeiro grande acto de dissidência em relação ao conjunto da denominação, e o ponto forte de conflito é precisamente o da legitimidade da escravatura  – que era exigida pelos Baptistas do Sul e fora recusada pela comissão executiva da Convenção Trianual no ano anterior. Importa recordar que, no princípio do século XIX, as igrejas baptistas de todo o grande espaço norte-americano reuniam-se de três em três anos para acertarem o passo entre si, em matérias de doutrina, serviço e missão.

Mas este trabalho de investigação sociológica que é o livro  White too Long descreve a persistência dos preconceitos de racismo e supremacia branca em todas as igrejas cristãs nos Estados Unidos, procurando a percentagem relativa e outras diferenças nesta matéria.

Um século depois da guerra civil, nos anos 50/60 do séc. XX, o movimento dos direitos civis dos negros nos EUA  – dirigido pelo pastor baptista Martin Luther King –  volta a ser uma espécie de guerra civil entre baptistas. Orval Faubus, o então governador do Estado do Arkansas, que se opôs ao fim da segregação no ensino público, era baptista.

Em Setembro de 1957, os primeiros nove estudantes negros a apresentarem-se à porta do Liceu Central de Little Rock foram impedidos de entrar por militares da Guarda Nacional do Arkansas  –  oficialmente enviados para evitar “tumultos e violência”. O então Presidente, General Dwight Eisenhower, acabou por colocar a Guarda Nacional do Arkansas sob comando federal e mandou-a recolher a quartéis, enviando em efectiva defesa dos estudantes negros um destacamento de paraquedistas da 101st Airborne Division.

Importa salientar neste ponto o papel desempenhado pela Segunda Igreja Baptista de Little Rock, dirigida pelo pastor Dale Cowling, que teve a coragem de pregar contra a segregação e, no ano lectivo de 1958-59, quando Orval Faubus fechou todos os liceus, abriu ele mesmo um liceu na sua igreja  – que se tornou a primeira igreja baptista racialmente integrada nos anos 60, num tempo em que a linha oficial da Convenção Baptista do Sul era segregacionista.

Chegados a este ponto, podemos sempre dizer que qualquer grande igreja  – como qualquer grande instituição humana –  acaba por ter, no decurso da sua história, conflitos internos entre tendências mais conservadoras e outras mais liberais; estes termos, correntes no jornalismo em língua inglesa, podem ser, nas igrejas, substituídos por expressões de tom reciprocamente mais agressivo consoante o nível de conflito: por exemplo, tendências mais “fundamentalistas” contra as mais “permissivas”.

Estes debates tornam-se muito vivos no seio da Convenção Baptista do Sul a partir dos anos 80 do século findo, desembocando em ruptura: em Julho de 2003, a Aliança Baptista Mundial (BWA) reconhece e recebe como membro uma dissidência “liberal” da CBS,  a Cooperative Baptist Fellowship, a que se encontra ligado o ex-Presidente dos EUA e Prémio Nobel da Paz Jimmy Carter; no ano seguinte, a mesma Convenção corta os seus laços de pertença à Aliança Baptista Mundial, da qual fora um dos mais importantes fundadores um século antes, em 1905.

A agência de Imprensa da Convenção Baptista do Sul, a Baptist Press, descrevia então os 25 anos da conservative resurgence (o ressurgimento conservador) como um confronto doutrinal em que os conservadores tinham derrotado os moderates (moderados), numa luta pelos postos de direcção e de ensino nos seminários da denominação. Esse confronto decorreu sobretudo entre a convenção anual de 1979, realizada em Houston, Texas, e a que teve lugar em New Orleans em 1990, último ano em que os moderados ainda apresentaram um candidato de oposição.

Num texto de balanço sobre esta controvérsia, publicado em Junho de 2004 na Baptist Press, Michael Foust contava que “a discussão sobre qual era a origem da controvérsia já era por si mesma uma controvérsia”:

“Os moderados afirmavam que o que os conservadores queriam era o poder. Os conservadores, por seu lado, insistiam em que a autoridade bíblica é que era a origem da controvérsia, e que a Convenção se tinha afastado das suas raízes bíblicas e históricas.”

Por seu lado, Jimmy Carter, presente na comemoração do centenário da Baptist World Alliance  em Birmingham, Inglaterra, em Julho de 2005, expunha deste modo as características principais daquilo que definiu como a actual tendência para o fundamentalismo nas igrejas:

  1. – Liderança masculina autoritária, que se considera superior, subjugando as mulheres e dominando os outros crentes.   [A declaração de fé da SBC,  Baptist Faith & Message, continua a não aceitar o acesso das mulheres ao ministério pastoral.]
  2. – Definem distinções que os caracterizam como os “verdadeiros crentes” e rejeitam quem os contradiga como inferior e fora do alcance da bênção do povo de Deus.
  3. – Militância agressiva contra qualquer ameaça em relação às suas crenças, que pode ir até à violência física.
  4. – Definição de princípios estreita e restritiva, tendência para se isolarem em temas sociais emotivos, e para verem qualquer forma de cooperação e negociação para solução de diferenças como sinais de fraqueza.

A Convenção Baptista do Sul já deixara de ser membro da Aliança Baptista Mundial desde Junho do ano anterior, mas não faltaram na celebração do Centenário da BWA, em Birmingham, algumas das suas figuras mais conhecidas, como o pastor Rick Warren, da Igreja Baptista de Saddleback  – uma  mega-church com dezenas de milhares de membros, em Lake Forest, Califórnia –  a quem coube a pregação no culto de sáb. 30 de Julho.

Jimmy Carter, um crente baptista praticante que nunca deixou de ser professor da Escola Dominical na sua igreja de origem, a Maranatha Baptist Church de Plains, na Georgia, inspirou e patrocinou a articulação de cerca de três dezenas de convenções e associações de igrejas (muitas delas de população principalmente negra) que entre 2007 e 2008 constituíram a New Baptist Covenant  (Nova Aliança Baptista), representando cerca de vinte milhões de fiéis. Estiveram com ele neste projecto outros dois estadistas que passaram pela Casa Branca, o ex-Presidente Bill Clinton e o ex-Vice-Presidente Al Gore  – também eles membros de igrejas baptistas.

No fundo, os descendentes dos escravos negros ainda estão a lutar pelo texto completo do livro do Êxodo, que lhes foi censurado na “Bíblia dos Escravos” de 1807  – e a fazer frente aos derrotados na guerra civil do séc. XIX, que estão de regresso, vêm ressentidos e gostariam de matar outra vez Abraão Lincoln.

E se era preciso, depois de tudo o que tem acontecido, definir os espaços da esperança espiritual (e do voto político) por onde se reparte a diversidade da grande família baptista nos Estados Unidos, esse trabalho está feito.

Silas Oliveira

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